[N.A.] Chico Felitti e Daniel Trench compartilham aqui seus diários da quarentena

Por Equipe Todavia

 

A maior parte das coisas aqui na editora é feita por diversas pessoas em conjunto. E não porque temos uma equipe numerosa; ao contrário: pelo tamanho enxuto é que precisamos construir praticamente tudo de forma coletiva.

Completamos dois meses de isolamento e decidimos que não dá mais para ficar tão longe dessa turma — escritoras e escritores, designers gráficos, ilustradoras e ilustradores, tradutoras e tradutores. Fizemos, então, um convite aberto a esse pessoal: o que vocês gostariam de compartilhar com os leitores da Todavia neste período?

Este é o [N. A.]. 

Emprestamos a abreviação “nota do autor” porque são essas autoras e esses autores que, por meio de suas criações, nos ajudam a construir a editora, diariamente. Todas as terças e sábados, você verá aqui o que nossa turma escolheu compartilhar.

Obrigada pela visita :) 

#VamosVirarEssaPágina

 

*

 

Chico Felitti, autor de RICARDO & VÂNIA e A CASA, abre seu diário com vista para o Hospital Samaritano. “Um registro de dias confusos de silêncio, morte e lágrimas de alegria, enquanto o hospital na frente da minha janela enche”, acrescenta.

 

Mil mortes, três cebolas

 

30 de março de 2020

 

Eu moro na frente de um termômetro. Um termômetro de concreto, com oito andares de altura, que é o Hospital Samaritano. É o único contato que eu tenho com a pandemia (por que minha língua e meus dedos coçam pra falar epidemia toda vez que eu vou escrever pandemia?).

A doença ainda é só um apocalipse agendado e uma hora e meia de notícias ruins toda noite na TV, e o prédio é o único contato concreto que tenho com o vírus. As luzes das janelas dos quartos do hospital estão quase todas acesas hoje às sete da noite. Assim, aceso, o hospital parece um sorriso gigante — ele é mais comprido do que alto, e vejo de frente o paredão de quartos e de UTIs. Um sorriso muito saudável, ou, pelo menos, um sorriso de dentes artificialmente clareados, ainda que não saudáveis.

Entre o Natal e o Revéillon, eram seis ou sete dentes de luz iluminados em uma gengiva completamente escura. Três andares ficavam no breu, desconfio que estavam fechados durante as festas.

Mas, desde fevereiro, o hospital foi ganhando luz — é a primeira vez que vejo a luz como sinal de desesperança. A cada dia, mais janelas se acendem. De vez em quando, um vulto humano se aproxima da janela. Mas, na maior parte da noite, parece que ninguém se levanta nos quartos. Cada janela é um tijolo luminoso e perfeito.

Quando todas as luzes estiverem acesas, e o sorriso estiver completo, sem nenhuma banguela, o que vai acontecer?

 

2 de abril de 2020

 

Faz três semanas que não saio de casa. Minto, faz três semanas que não saio de casa a não ser para ir ao mercado, mascarado e num frenesi que me faz parecer um participante daquele game show em que as pessoas tinham dois minutos para pegar o que pudessem dentro de um supermercado que, na verdade, era um estúdio de TV. Minto de novo, também saio, quase diariamente, para encontrar minha mãe em território neutro e inabitado: a quadra do prédio dela. 

Sempre pergunto o que ela quer da rua, e ela oferece mais do que pede. Saio carregado de rosbife, purê de batata-doce roxa, molho de tomate e bolachas de nata — tudo fruto da sua quarentena solitária. Mas hoje foi uma exceção: ela perguntou se eu tinha cebola.

“Aqui tem três. Você quer quantas?”

“Traz as três.”

Passamos meia hora conversando sobre o nada. Jogamos bolinha com a cachorra dela, cada um em um canto da quadra. Na hora de ir embora, eu jogo a sacola com as cebolas dentro, mas agora na direção da humana, e não na da cadela. Na volta, atravesso a rua da Consolação e fico comovido entre uma calçada e a outra. Comovido por conseguir levar três cebolas para minha mãe. E as cebolas me fazem chorar, por mais que não tenham saído da casca.

O estado de graça se transforma em estado de culpa em meio quarteirão. Culpa de ter saído de casa para uma entrega que não era de primeira necessidade; três cebolas, e culpa por poder comprar três cebolas para minha mãe, por mais que eu tenha perdido metade dos trabalhos agendados para os próximos meses.

Enquanto choro, cruzo com um velho conhecido, que está de bicicleta. Eu o vejo e penso que ele está rompendo a quarentena, então imagino que ele me vê e pensa que eu estou rompendo a quarentena. A gente troca um olhar cúmplice, e ele acena sem descer da bike.

 

10 de abril de 2020

 

O mesmo conhecido posta nas redes sociais que seu pai morreu no hospital sem poder ver ninguém da família. Por mais que tenha recebido um resultado positivo para coronavírus durante a internação, seu atestado de óbito era de “suspeita de coronavírus”.

No Facebook, ele narra como não pôde dar ao pai o enterro que os dois haviam combinado. O trato era que o filho ficaria na cabeceira do caixão, e avisaria cantando para o pai o nome de cada uma das pessoas que chegasse. “Os jornais deveriam parar de contabilizar os casos e mostrar rostos. Deveriam ter rostos nas capas de jornais e nas bancas de revista diariamente e não números”, ele escreve.

Eu choro de novo. E escrevo uma mensagem dizendo que não conheço a dor que ele sente. Mas que, se ele achar por bem, posso escrever sobre seu pai. Ele topa.

 

17 de abril de 2020

 

Crio um site para compartilhar as histórias que as famílias permitirem. Começo a procurar a família e os amigos de pessoas que morreram, esteja o vírus no atestado ou não.

A busca se mostra mais fácil do que o esperado. As pessoas me procuram para contar suas histórias. A avó de um amigo. O tio de uma ex-colega de trabalho. O amigo de cosplay de uma neurocirurgiã que entrevistei dois anos atrás.

As histórias são mais cheias de vida do que são de morte. O fim é um detalhe, um rabicho, uma formalidade.

 

19 de abril de 2020

 

Passo os dias ouvindo histórias. Como a de uma pescadora corinthiana de 63 anos de Rio Claro, que levou consigo um segredo. Um segredo que morre junto com ela, promete à outra única pessoa que o conhecia, sua melhor amiga, uma prima com quem cresceu e de quem se reaproximou depois que as duas tinham criado os filhos: “Eu não vou contar pra ninguém”.

Uma funcionária da UTI da Santa Casa narra por horas sua amizade de quase vinte anos com um técnico de enfermagem, que conheceu quando ele chegou bêbado para trabalhar, depois de fazer um bico como segurança de boate. Os dois trocaram gritos, mas logo se entenderam. Vinte anos depois, ela seguraria a mão dele em uma UTI na qual os dois nunca tinham trabalhado juntos.

 

26 de abril de 2020

 

Uma das pessoas sobre quem escrevo, descubro, é bolsonarista. Não só apoiou o presidente até dias antes de sua morte como também compartilhava de seu sadismo. Três meses antes de morrer de Covid-19, essa pessoa publicou a seguinte frase: “Se as pessoas podem brincar com Jesus, eu posso brincar com a morte de Marielle. Deixe a hipocrisia de lado e veja como arte”. No meme, a foto mais conhecida de Marielle Franco, com o rosto erguido e olhar voltado para o horizonte, foi digitalmente alterada: seus dois olhos são cobertos cada um por um xis e há uma mancha vermelha em sua testa, simulando um tiro. Omito essa informação do obituário. A família lê o texto e agradece. Sua filha diz: “Ele era uma pessoa boa”.

As luzes do hospital Samaritano se acendem mais rápido do que o sol se põe. Em questão de poucos minutos, já formaram um paredão de luz. Nenhuma está apagada. É um sorriso completo.

 

Chico Felitti é repórter. Ganhou os prêmios Petrobras e Comunique-se de jornalismo. É autor de RICARDO & VÂNIA (2018) e A CASA (2020), publicados pela Todavia.

 

--------------------------------------------------

 

Daniel Trench, designer gráfico e editor de arte da revista Serrote, desenha enquanto faz reuniões no Zoom. “Esses rabiscos surgem nesse momento, em que a nossa socialização é mediada por telas. Entre aulas, reuniões e conversas com amigos, passo os dias de frente ao computador, conversando com rostos enquadrados por pequenas janelas. Para aplacar o angustiante dia da marmota, rabisco.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Daniel Trench é designer gráfico, editor de arte da revista “Serrote” e colaborador da Todavia. Ele é autor dos projetos gráficos dos seguintes livros da editora: A QUESTÃO DA CULPA, TUDO QUE É BELO, COMO NASCE O NOVO, PESADO DEMAIS PARA A VENTANIA, A ERA DO COMETA, MIL SÓISO CADETE E O CAPITÃO e O RETALHO.


autores relacionados

doo.is