Trecho do livro
Um dia Mirela abrirá a porta de casa, Camila de nove anos de um lado e a sacola de compras pendendo do outro, descerá de elevador os sete andares, acenará ao porteiro, baterá o portão e sairá à rua. Notará junto da filha que as flores já terão caído da árvore da esquina, estendendo sob seus pés um tapete sazonal, rosa e verde a cada outono: será a quarta vez que elas o verão reaparecer debaixo daquela quaresmeira. Perguntará se Camila trouxe a lista de compras — Mirela ainda não terá se acostumado a fazer listas virtuais — e, antes da resposta, tentará resgatar da memória o que estava faltando em casa. Caminhará distraída, em trégua
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Um dia Mirela abrirá a porta de casa, Camila de nove anos de um lado e a sacola de compras pendendo do outro, descerá de elevador os sete andares, acenará ao porteiro, baterá o portão e sairá à rua. Notará junto da filha que as flores já terão caído da árvore da esquina, estendendo sob seus pés um tapete sazonal, rosa e verde a cada outono: será a quarta vez que elas o verão reaparecer debaixo daquela quaresmeira. Perguntará se Camila trouxe a lista de compras — Mirela ainda não terá se acostumado a fazer listas virtuais — e, antes da resposta, tentará resgatar da memória o que estava faltando em casa. Caminhará distraída, em trégua com a própria vida: aos quarenta e quatro anos ainda não saberá o que é a paz, e talvez nunca chegue a saber. Sentirá, no fim da tarde de quinta, que o vento traz, sim, alguma alegria, e quase concluirá que é feliz, se tivesse elaborado em pensamento o conforto vago da brisa.
Depois de uns quinze minutos, Mirela e a filha chegarão ao supermercado e Camila pegará um carrinho, enquanto a mãe colocará os óculos para enxergar a lista de compras que, afinal, estará em sua própria bolsa — a presbiopia já estará chegando, mas isso não vai incomodá-la. Percorrerão os corredores conhecidos do supermercado, às vezes juntas, às vezes separadas, Camila se afastando para pegar o molho de tomate ou o iogurte enquanto Mirela compara os preços do sabão em pó. E então, como se fosse para aquele momento que convergissem todos os últimos anos, ou pelo menos os anos antes de conhecer Rui, Mirela olhará sem querer para o lado e verá um homem com a mão estendida em direção à prateleira dos amaciantes.
A mera tentativa de entender como chegou até aquele instante, de olhar em volta — as prateleiras, o carrinho com as duas caixas de sabão em pó, a música de fundo do supermercado: a realidade —, deixará evidente que o ar está espesso porque terá passado a existir. A presença daquele homem. E será estranho: o fim da tarde mudará de teor sem que Mirela possa se perguntar o porquê, e sentirá vertigem — o buraco do instante. Pedro, ela então se dará conta, como uma imagem embaçada que vai ganhando os contornos nítidos do foco.
Camila, que estará voltando do corredor dos pães, não entenderá por que a mãe está paralisada, os braços um pouco levantados, a mão direita um pouco acima da esquerda, olhando por cima dos óculos aquele homem que a olhará de volta, ele também paralisado, mas encolhido. Não saberá que aquele homem é Pedro, pois Camila nunca haverá tido notícia da existência de Pedro até aquele momento.
Mirela olhará o cabelo grisalho, guardando só resquícios do loiro que foi, mais ralo nas têmporas, e recordará o medo de Pedro da calvície. Reparará que continua magro, talvez um pouco menos; a cicatriz do lado esquerdo do rosto, acima da barba — ele ainda usará barba, a mesma daqueles tempos, mas branca —, estará ainda ali, apenas mais tênue. Observará as novas rugas na testa, no canto dos olhos, as marcas desconhecidas na pele — ela também as terá, várias, mas continuará aparentando menos idade. E então, depois de percorrer seu tamanho, o cabelo, o rosto, como se guardasse para o final a melhor parte, ou como se a estivesse evitando, ou ambos, chegará finalmente a seus olhos, que a olharão também como há mais de dez anos.