Trecho do livro
"Existe uma contração muito particular nos músculos da face que antecede o primeiro segundo do choro. Eles se tensionam em alerta, como se estivessem terminando de embrulhar um pacote a ser aberto sem comemorações. Meus olhos piscam secos uma última vez, querendo se fechar para sempre em repouso, cada cílio penteando a pele fina, a pulsação acelerada sob a pálpebra, as imagens internas se misturando: o que era, o que era, o que será. A ponta do meu queixo treme como nunca; os cantos da boca murcham, o lábio inferior despenca e a mandíbula se lança ao vazio, tentando uma palavra, uma frase, que não consegue ser dita nem pensada. Da g
[leia mais]
"Existe uma contração muito particular nos músculos da face que antecede o primeiro segundo do choro. Eles se tensionam em alerta, como se estivessem terminando de embrulhar um pacote a ser aberto sem comemorações. Meus olhos piscam secos uma última vez, querendo se fechar para sempre em repouso, cada cílio penteando a pele fina, a pulsação acelerada sob a pálpebra, as imagens internas se misturando: o que era, o que era, o que será. A ponta do meu queixo treme como nunca; os cantos da boca murcham, o lábio inferior despenca e a mandíbula se lança ao vazio, tentando uma palavra, uma frase, que não consegue ser dita nem pensada. Da garganta não sai nada. As cordas vocais esticadas são um violoncelo sem arco. Um suspiro então acontece, como o impulso final da corrida. O mesmo suspiro que uma mãe conseguiria decifrar do seu bebê sobre a barriga — um tremer daquele corpo tão pequeno, um segundo só e a certeza de que algo vai irromper, o fôlego interrompido, o microssegundo antes da lágrima formada na raiz dos cílios inferiores. O abismo onde caio.
O envelope rasgado em cima da mesa, o papel timbrado nas minhas mãos — as letras e os números formam manchas que decodifico mesmo sem entender a lógica. Que lógica? O nome germânico do exame antecedido de um anti, anti-mülleriano, não significa nada para mim. Mas, rodeado de espaços em branco, um número em corpo miúdo aponta para o meu nariz como um dedo em riste: não posso mais ter filhos. Meu olhar veloz vai de um canto a outro, compara os pequenos três centésimos aos demais números do canto direito, inteiros, absolutos. Meu resultado é um número quase.
Eu nesta posição, eu com os braços lançados sobre a mesa, os pés pesados parecem que não vão mais se mover, sair de lá, enterrados, a distância imensa que há entre um quatro inteiro e três centésimos, um abismo paradoxal de infinito, me sinto menor do que nunca, um decimal separado infinitas vezes do inteiro, eu, que só queria ser inteira, eu que só.
O choro irrompe como se não fosse meu. Meu queixo tremendo é o choro de mil mulheres, meu e da minha mãe. Dela e da mãe dela. E do pai dela a mãe dele. E dessas mães as mães delas, e delas, e mais delas. Choram por mim, choram para mim e comigo, num coro que atravessa anos e séculos, até a primeira célula que é uma e se divide uma e outra e uma e outra e uma e outra vez. Essas mulheres no oco de minha cabeça, mãos fortes nas cinturas finas e grossas, olhando por trás da minha mente, dizendo vem vem que chegou a hora, porque tudo acabou aqui, e não haverá mais nada nem ninguém para continuar a sua história. A minha história."