[N.A.] Itamar Vieira Junior compartilha aqui seu diário da quarentena
A maior parte das coisas aqui na editora é feita por diversas pessoas em conjunto. E não porque temos uma equipe numerosa; ao contrário: pelo tamanho enxuto é que precisamos construir praticamente tudo de forma coletiva.
Completamos dois meses de isolamento e decidimos que não dá mais para ficar tão longe dessa turma — escritoras e escritores, designers gráficos, ilustradoras e ilustradores, tradutoras e tradutores. Fizemos, então, um convite aberto a esse pessoal: o que vocês gostariam de compartilhar com os leitores da Todavia neste período?
Este é o [N. A.].
Emprestamos a abreviação “nota do autor” porque são essas autoras e esses autores que, por meio de suas criações, nos ajudam a construir a editora, diariamente. Todas as terças e sábados, você verá aqui o que nossa turma escolheu compartilhar.
Obrigada pela visita :)
#VamosVirarEssaPágina
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Itamar Vieira Junior é autor de TORTO ARADO e escreve sobre suas breves saídas durante o período de isolamento social.
O tempo dos olhos
As poucas vezes que tenho saído de casa têm sido para comprar alimentos, levar os cães para dar uma volta ou prestar assistência a meu avô que, aos 82 anos, mora sozinho e ainda guarda as sequelas de uma pneumonectomia realizada na juventude. Nessas saídas cronometradas e cercadas de cuidados posso observar as pessoas, rapidamente, em seus afazeres, dirigindo seus automóveis, no transporte coletivo, no supermercado ou na farmácia, e, de forma mais detida, quando me aproximo do caixa para pagar uma compra ou para receber algum volume das mãos do carteiro. Nesses encontros não deixo de tentar imaginar como está o humor de meu interlocutor, se as mesmas angústias, se os mesmos problemas nos afligem. Com a obrigatoriedade da utilização de máscaras, as expressões humanas que completam os sentidos da nossa comunicação, e que aprendemos a decodificar desde a infância, ficam embotadas, e todo o nosso exercício silencioso de compreender o outro se concentra automaticamente na fração descoberta da face: os olhos.
Os olhos exercem um fascínio sobre os criadores desde sempre. Uma das passagens mais célebres do Livro de Mateus diz que “Os olhos são a candeia do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz”. Quem não recorda também da frase atribuída a Leonardo da Vinci, “Os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo”? Ou dos “olhos de ressaca” e “de cigana oblíqua e dissimulada” da Capitu de Machado de Assis? Ou ainda dos versos de Vinicius de Moraes “Quando a luz dos olhos meus/E a luz dos olhos teus/ Resolvem se encontrar”? Ao escrever o romance Ensaio sobre a cegueira, Saramago tornou os olhos (ou a ausência da visão) numa inusitada metáfora da trajetória humana. A história nos apresenta uma sociedade que, por conta de uma epidemia viral, a cegueira branca, não pode mais contemplar a si própria. O medo dessa hipótese nos paralisa, e é este sentimento o “vírus” a que o autor se refere: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”. Reler esse trecho me fez compreender que vivíamos num mundo já adoecido antes da pandemia. Ainda que não nos tenham coberto os olhos, precisamos reconhecer que a visão é mais que uma reação fotoquímica dos nossos nervos ópticos. Que existem níveis de deficiência, e que sempre poderemos expandir ou reduzir a nossa visão, de acordo com escolhas ou imposições que nos são feitas.
De uma hora para outra parece que as personagens da artista plástica Margaret Ulbrich Keane — que se tornou mais conhecida a partir do filme Grandes Olhos, de Tim Burton — saltaram de suas telas para o nosso mundo. De tanto procurar sentido para as nossas atuais aflições, nos comunicamos com o que nos resta do nosso corpo. Um corpo que deve se manter afastado, ausente, protegido pelos acessórios que usamos, até que nos digam o contrário. Não seria uma hipérbole dizer que os olhos com que vemos e somos vistos se tornaram o centro de nosso Eu nestes tempos de pandemia. Eles continuam a revelar as intenções humanas: e não adianta cobrir a face. Não há máscara que esconda os anseios antidemocráticos, o racismo, a persistente banalidade do mal que nos infligem dia a dia. Da mesma forma, são os olhares de confiança que nos impelem a prosseguir; a avançar na fila do supermercado, a atravessar uma rua, a sentir coragem para esperar que aquele seja um bom dia. É através desses mesmos olhos que homens e mulheres têm expressado sua dor e emoção por tantas vidas abreviadas pela peste que grassa. Olhos que também irão refletir o alívio ao encontrar alguém que ama recuperado.
No futuro, quando recordarmos destes meses de medo e dor, lembraremos dos olhos como o coração de nosso tempo.
Desde o início da quarentena os livros têm sido meus fiéis companheiros. Vou destacar três leituras que fiz do rico catálogo da Todavia:
Sistema nervoso, Lina Meruane — a história de uma narradora que a partir de si e suas aflições, doenças e medos reflete o seu entorno e o todo.
A ridícula ideia de nunca mais te ver, Rosa Montero — A partir do diário de luto de Marie Curie, uma das maiores cientistas do século XX, a autora pensa o próprio luto e nos revela a universalidade da dor.
A vida pela frente, Émile Ajar (Romain Gary) — Momo é um menino órfão criado por uma ex-prostituta judia, Madame Rosa, uma sobrevivente dos campos de concentração da Segunda Guerra. É pelos olhos do menino que vamos desvendar essa inusitada relação de amor.
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Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA. Pela Todavia, publicou TORTO ARADO (2019).