“Um livro ambicioso, que nos leva das células à galáxia.”
El Cultural
Trecho do livro
O país tinha ficado às escuras. Era um imenso buraco negro, sem velas.
Em outro tempo, em outro lugar, sua casa estava cheia de velas magras longas nebulosas, embrulhadas em papel azul ou amarradas com barbante, para as emergências.
Não havia velas no país do presente onde a luz nunca sumia. Nunca, até que sumiu.
Ela viu morrer a lâmpada que iluminava seu rosto em parte e a noite, quase nada. Ficou por alguns segundos com as mãos sobre o teclado, pestanejando à luz da sua tela cheia de números. Ela. Perguntando-se se seria um fusível queimado. Um mero apagão ou um atentado contra a velha usina nuclear construída e abandonad [leia mais]
O país tinha ficado às escuras. Era um imenso buraco negro, sem velas.
Em outro tempo, em outro lugar, sua casa estava cheia de velas magras longas nebulosas, embrulhadas em papel azul ou amarradas com barbante, para as emergências.
Não havia velas no país do presente onde a luz nunca sumia. Nunca, até que sumiu.
Ela viu morrer a lâmpada que iluminava seu rosto em parte e a noite, quase nada. Ficou por alguns segundos com as mãos sobre o teclado, pestanejando à luz da sua tela cheia de números. Ela. Perguntando-se se seria um fusível queimado. Um mero apagão ou um atentado contra a velha usina nuclear construída e abandonada durante a Guerra Fria. Não muito longe do seu prédio, aquela energia atômica que podia explodir a qualquer momento.
Sempre à beira da catástrofe, seu país do passado costumava sofrer cortes de energia por causa das enchentes, ou da queda de neve sobre as árvores e de galhos sobre os postes de luz. Fios desencapados eletrocutando o vento. Os canais e os rios transbordavam. E os prédios tremiam com o constante atrito das placas tectônicas. Os vulcões crepitavam cuspindo lava. As florestas ardiam em chamas, as árvores tombavam esturricadas até a raiz, as casas em seus alicerces, as estradas cartazes colmeias derretidas, os pássaros em revoada. Calcinados seus corpos se não apressassem a fuga.
Estes, seus corpos, possuídos pela luz.
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Isso vai me atrasar, Ela exclamou levantando os braços; mais, vai me atrasar mais ainda, e berrava para Ele que já devia tê-la ouvido em algum canto abrindo e fechando gavetas com violência, em vão procurando uma lanterna. Ela revirava papéis e chaves e praguejava. Ele ergueu sua voz incendiária para lhe dizer pare com isso, Elétron. Era o que vinha lhe dizendo há meses, que desligasse o computador, que desistisse da sua tese e das angústias que lhe causava a prisão perpétua de tamanha pesquisa.
Trabalhar por tantas horas podia fazê-la explodir. Era o que lhe dizia, Ele que sabia de explosões. Mas não disse explodir nem estourar, disse, queimando a língua num café que acabara de preparar e que agora equilibrava no escuro. Como se cuspisse, disse curto-circuito.
E Ela viu uma fagulha rápida percorrer seus nervos. A pele coberta de pelos acesos vibrantes elétricos.
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Até as mais insignificantes e vagas estrelas agora salpicavam a noite com sua luz. Pareciam fumegar de tão acesas sobre a cidade apagada. Parou junto à janela para admirá-las. As radiantes constelações, o pulverizado universo da física que Ela não conseguia apanhar naquela tese que vinha escrevendo há tantos anos. Anos sem escrever. Começara estudando as órbitas elípticas e seus campos magnéticos, os cinturões de asteroides e os restos de supernovas milenares; dedicara meses ou talvez anos aos sistemas estelares mais próximos do Sol procurando em vão planetas habitáveis, e conjeturou a posição de astros parecidos com a Terra. Uma coisa levava a outra e refutava a anterior, obrigando-a a recomeçar sua pesquisa.
Seu último esforço seria dedicado às estrelas que já perderam sua luz e colapsaram sobre si próprias formando densos buracos negros.
Só que esses buracos precisavam de um orientador que entendesse deles e quisesse assumir a orientação da sua tese. Que acreditasse que Ela era capaz de lidar com essa densidade. Nem Ela mesma tinha certeza disso, e seu tempo estava acabando.
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De repente todas as lâmpadas se acenderam ao mesmo tempo, como atravessadas por um raio. Recomeçava a sessão depois de um intervalo de horas. Abriu uma lata de coca-cola cheia de açúcar e cafeína que tomaria antes de mergulhar de volta na tela, por sua conta e risco. Calcularia valores de desvio cósmico e radiação. Mediria o deslocamento das estrelas que se esticavam ao redor do buraco giratório voraz ponto de não retorno que as tragaria. E digitaria fórmulas que depois trataria de descartar.
Ele a veria cruzar a porta, nessa e nas manhãs seguintes, e enrugaria a cicatriz que lhe atravessava a testa. Ela perceberia que Ele também tinha deixado de acreditar que Ela pudesse terminar.
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Foi pensando em apagões e em buracos insondáveis que se acendeu sua ilusão de adoecer. Pensou nisso sem resolver qual a doença. Um resfriado ou uma gripe não lhe proporcionariam a pausa necessária para terminar a tese. Uma pneumonia a impediria de trabalhar. Um câncer seria arriscado demais. Então passou por sua memória o Pai com uma úlcera hemorrágica que o prostrou na cama por vários meses: imaginou-se deitada em outra cama, com seu computador no colo, comendo ovos moles e biscoitinhos insípidos e tomando às escondidas irritantes goles de coca-cola.
Adoecer: ia pedir isso à mãe que a pariu, a mãe biológica e já falecida. Que Ela não chegou a conhecer. Sempre a invocava nas dificuldades. Acendendo um incenso, implorou que a fizesse adoecer de alguma coisa grave mas passageira. Não para morrer como a mãe, de modo repentino. Apenas o suficiente para tirar uma licença de um semestre sem ter que dar todas aquelas aulas de ciências planetárias para tantos alunos distraídos a quem devia ensinar avaliar esquecer logo. Apenas o afastamento temporário desse trabalho mal pago para poder entregar-se a outro que não pagava nada.
Não tinha mais a quem pedir. Seu Pai já lhe entregara o que tinha.
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História de um pacto secreto. Ninguém sabia que o Pai financiara seus estudos no país do presente com as economias destinadas à sua futura velhice. Com esse acordo tinham espoliado seus três irmãos e aquela Mãe que não era dela. Porque a Mãe que teve de preencher a ausência da primeira mãe jamais teria concordado com aquilo. Esse dinheiro todo?!, teria exclamado em defesa dos seus filhos gêmeos e deserdados. É uma fortuna!, arguiria temendo as penúrias que aquele gasto poderia acarretar ao Pai.
O Pai nunca contaria para a segunda mulher que essa era a promessa feita à primeira, exangue depois do parto da filha. Prometa que Ela vai estudar o que quiser, que você vai pagar a faculdade que Ela escolher sem impor condições, murmurou com voz vacilante mas certa de que estava morrendo. É o que eu queria fazer. O que teria feito. Estudar. Se não tivesse, e parou, fechou os olhos por um longo segundo. Casado, disse, sua frase ia sangrando. Tão jovem, eu, com você. O que teria.
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Ele, já penteado e vestido e barbeado, já acabando de tomar seu café, prestes a partir para o laboratório de carbono e a datar uns ossos acabados de desempoeirar. Ela, vestida mas despenteada, se arrasta até o quarto para escolher seu uniforme de professora e pegar as anotações das cinco aulas que vai dar nesse dia em três escolas da cidade. Com olhos foscos se senta à mesa e confia a Ele o que Ela quer. Adoecer. Conseguir seis meses livres. Ficar em casa só com as duas mãos, com as 82 teclas embaixo de dez dedos batendo de maneira intermitente. Imprimir suas pegadas numa tese que ainda tem árduas semanas de mesa pela frente.
Be careful what you wish for, é o que Ele lhe responde juntando as sobrancelhas numa única linha. O nariz afilado aponta para o prato vazio enquanto murmura sua advertência. Você não precisa da aprovação do seu velho, disse com ar aborrecido, nem precisa lhe dizer que não terminou a tese, que provavelmente nunca vai acabar. Você não precisa desse título, Eletrógena, não para dar suas aulas de astronomia. De ciências planetárias extraterrestres, Ela corrige.
Ela não tinha lhe contado que nunca tivera uma bolsa de estudos, nem de onde saíra até o último centavo, de que bolso, nem que acabava de ligar para seu Pai para lhe dizer já defendi a tese, papai, já sou doutora. Nem que seu Pai tinha respondido com tristeza ou talvez com rancor, já era hora, filha. Que seu Pai ficou em silêncio antes de informar que Ela era a única doutora da família. Etimologicamente doutora, murmurou o Pai enquanto Ela sentia sua voz encolher.
Não sabia por que havia mentido, mas isso também era mentira.
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Be careful, e deixou a mesa e saiu sem se despedir.