Trecho do livro
Quando tinha onze anos, eu ficava deitado, à noite, sozinho no escuro, no chão da sala ouvindo cantos gregorianos, registros fonográficos da escola de canto da minha mãe, do coro de que ela fazia parte na Basílica de Santa Maria, no centro de Minneapolis. Sozinho no escuro, eu me via dez anos depois, vestido com uma batina branca, seguido no corredor de pedras frias por dois coroinhas. O ar fresco da catedral era riscado pelo incenso. Estava úmido em Minnesota naquele verão de 1967. O Verão do Amor na costa da Califórnia era uma estação úmida e marcada pelo assédio dos mosquitos na Terra dos 10 Mil Lagos. Mas era fresco no chão, por
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Quando tinha onze anos, eu ficava deitado, à noite, sozinho no escuro, no chão da sala ouvindo cantos gregorianos, registros fonográficos da escola de canto da minha mãe, do coro de que ela fazia parte na Basílica de Santa Maria, no centro de Minneapolis. Sozinho no escuro, eu me via dez anos depois, vestido com uma batina branca, seguido no corredor de pedras frias por dois coroinhas. O ar fresco da catedral era riscado pelo incenso. Estava úmido em Minnesota naquele verão de 1967. O Verão do Amor na costa da Califórnia era uma estação úmida e marcada pelo assédio dos mosquitos na Terra dos 10 Mil Lagos. Mas era fresco no chão, por isso eu deitava sem camisa no carpete e entregava a minha pele aos sons imponentes, sulco após sulco de ondas que cresciam, nas quais eu criava um túnel e me imaginava como um padre. Santuário. Eu não era afropessimista aos onze anos e meu conhecimento sobre o que me causava tanta ansiedade era privado de um vocabulário racial crítico. Mas eu sabia que era negro; não pelos aromas de sassafrás e linguiça defumada saindo de um molho de gumbo que pairavam sobre minha casa, e sobre mais nenhuma da vizinhança, mas porque nós éramos os únicos que chamavam de pretos. Eu só passaria a ser negro no ano seguinte, 1968, ao fazer doze anos. No escuro, aos onze, deitado no chão da sala de estar, eu sabia que era negro não em função de meus elementos culturais, mas porque aquela era a fonte da minha vergonha; uma vergonha não compartilhada pelos vizinhos. Os cantos gregorianos tremulavam no meu peito, ampliando a escuridão em catacumbas longas e ocas que se estendiam através de mim e até o outro lado onde eu me via no futuro, um futuro em que era reverenciado por meus paroquianos, ao invés de evitado, como fui na primeira série por uma menina que não segurava minha mão por medo que minha fuligem a manchasse. No túnel sonoro do meu futuro, as crianças e meus professores genuflectiam quando eu passava, levantavam e se ajoelhavam quando eu mandava, confessavam a mim seus pecados antes de serem dignos do corpo de Cristo. Perdoai-me, Pai, pois pequei. Eu não segurava a mão dele porque a fuligem dele sairia na minha pele. Perdoai-me, Pai, porque pequei. Eu o chamei de macaco quando ele escalou a corda na aula de educação física. Perdoai-me, Pai, porque pequei. Entre meus dentes e meu lábio superior eu coloquei a minha língua e cocei meus sovacos quando ele desceu. Perdoai-me, Pai, porque pequei. Nós rimos. Perdoai-me, Pai, porque pequei. Enfiamos a cara dele na neve. Perdoai-me, Pai, porque pequei. Eu o chamei de “amigo” e o levei para casa para saciar a curiosidade da minha mãe. Qual é a sensação, ela perguntou, de ser negro? Perdoai-me, Pai, porque pequei. Fiz ele ficar na frente da turma e nos liderar no Juramento à Bandeira. Meu peito, meus braços e o carpete vinho absorviam as confissões deles como um campo de trigo imita o som da chuva. Quando vinham de New Orleans, ou do doce e pungente solo setenta quilômetros rio acima, minhas tias e meus tios me perguntavam se eu queria a luz acesa. As crianças no Sul não se aninhavam no escuro. Não, tia Joyce, quero a escuridão. Está relaxando, querido?, Sim, eu respondia, estou relaxando; quando na verdade o que eu realmente queria dizer era, estou compondo meu hino de redenção.