Trecho do livro
A rainha Jinga, que, durante o século XVII, governou o Ndongo, um reino da África central localizado onde hoje é uma parte do norte de Angola, chegou ao poder graças à bravura militar, à manipulação habilidosa da religião, à diplomacia bem-sucedida e à notável compreensão da política. Apesar de seus feitos extraordinários e de seu reinado de décadas, comparável ao de Elizabeth I da Inglaterra, ela foi difamada por contemporâneos europeus e escritores posteriores, que a acusaram de ser uma selvagem incivilizada que encarnava o pior do gênero feminino. Na época, os europeus a retrataram como uma canibal sanguinária que não hesitava em
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A rainha Jinga, que, durante o século XVII, governou o Ndongo, um reino da África central localizado onde hoje é uma parte do norte de Angola, chegou ao poder graças à bravura militar, à manipulação habilidosa da religião, à diplomacia bem-sucedida e à notável compreensão da política. Apesar de seus feitos extraordinários e de seu reinado de décadas, comparável ao de Elizabeth I da Inglaterra, ela foi difamada por contemporâneos europeus e escritores posteriores, que a acusaram de ser uma selvagem incivilizada que encarnava o pior do gênero feminino. Na época, os europeus a retrataram como uma canibal sanguinária que não hesitava em assassinar bebês e trucidar seus inimigos. Acusaram-na também de desafiar as normas do gênero ao vestir-se como homem, liderar exércitos, ostentar haréns de homens e mulheres e rejeitar as virtudes femininas de criar e cuidar dos filhos. Muito mais tarde, escritores do século XVIII e XIX criaram relatos fictícios sobre Jinga, retratando-a como uma mulher degenerada movida por desejos sexuais heterodoxos que se regozijava com rituais bárbaros.
A vida de Jinga continuou a ser vista principalmente como uma curiosidade. Mas o registro histórico revela uma coisa diferente: foi essa mesma Jinga que conquistou o reino de Matamba e o governou-o em conjunto com o remanescente do poderoso reino de Ndongo por três décadas; desafiou treze governadores portugueses de Angola entre 1622 e 1663, mantendo seu reino independente diante de ataques implacáveis; e fez importantes alianças políticas não só com várias entidades políticas vizinhas, mas também com a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Foi a mesma Jinga, cuja diplomacia religiosa possibilitou-lhe entrar em contato direto com o papa, que a aceitou como governante cristã, e estabelecer o cristianismo em seu reino.
A história de Jinga é importante sob muitos aspectos diferentes. De um lado, é um capítulo significativo da história da resistência ao colonialismo. Ao longo dos quatrocentos anos de ocupação portuguesa de Angola (1575-1975), a resistência nunca cessou. O lugar de Jinga como a mais bem-sucedida entre os governantes africanos na resistência aos portugueses influenciou não apenas o colonialismo português em Angola, mas também a política de libertação e independência na Angola moderna. A vida e a história de Jinga também tiveram implicações para as Américas. Os africanos capturados pelos portugueses ou comprados na região onde Jinga vivia e governava foram enviados como escravos para o Brasil e a América espanhola e foram os primeiros africanos a chegar às colônias norte-americanas. Esses escravos trouxeram a história e a memória de Jinga com eles.
Mas a vida e as ações de Jinga transcendem a história africana e a história da escravidão na África e nas Américas. Sua história revela temas maiores de gênero, poder, religião, liderança, colonialismo e resistência. Contam-se às centenas os livros sobre rainhas europeias famosas e, às vezes, famigeradas, como Elizabeth I da Inglaterra, que governou duas décadas antes de Jinga, e Catarina, a Grande, da Rússia, quase um século depois. Apesar dos muitos paralelos que Jinga compartilha com essas mulheres, não existia até agora nenhuma biografia séria sobre ela em inglês ou em qualquer outro idioma. Este livro revela a vida completa e complexa de Jinga, com foco nas questões de poder, liderança, gênero e espiritualidade.