“É provável que A VISÃO DAS PLANTAS venha a ser o livro de Djaimilia Pereira de Almeida em que os críticos assinalarão uma mudança de rumo: em vez da experiência ou da memória familiar, agora é a própria literatura que fornece a matéria prima da ficção.”
Público
Trecho do livro
A rega e o zelo geraram uma infinidade de seres que descobria nos dedos ao mexer na terra: minhocas, besouros verdes, bichos‑de‑conta. A vida regressava. Celestino plantou roseiras, cravos, uma cameleira, uma glicínia, uma ameixoeira, tomate, nabos e cebolos. No adubo usava sargaço, galhos e folhas, cascas de fruta. Construiu uma fileira de vasos para as ervas de cheiro. Podou um buxo com a forma de um barco rabelo. Plantou dois abetos. Caiou os alegretes. Germinava raízes ao sol, num berçário improvisado sobre uma tábua que fora uma porta. Quando não ia à vila ou ao Porto comprar sementes, os vizinhos ofereciam‑lhe pernadas disto e [leia mais]
A rega e o zelo geraram uma infinidade de seres que descobria nos dedos ao mexer na terra: minhocas, besouros verdes, bichos‑de‑conta. A vida regressava. Celestino plantou roseiras, cravos, uma cameleira, uma glicínia, uma ameixoeira, tomate, nabos e cebolos. No adubo usava sargaço, galhos e folhas, cascas de fruta. Construiu uma fileira de vasos para as ervas de cheiro. Podou um buxo com a forma de um barco rabelo. Plantou dois abetos. Caiou os alegretes. Germinava raízes ao sol, num berçário improvisado sobre uma tábua que fora uma porta. Quando não ia à vila ou ao Porto comprar sementes, os vizinhos ofereciam‑lhe pernadas disto e daquilo, ou apanhava plantas nos caminhos e transplantava‑as. Chegou a ter mais de vinte cactos, aos quais contava o número de espinhos. Fez um caminho de seixos na margem do ribeiro e uma caveira de conchas no bambuzal, que espalhava cor e vida, crescendo de um estalo, da noite para o dia, cinco ou seis dedos de altura. Padre Alfredo visitou‑o pela primeira vez naquela semana. O capitão estava tão desacostumado de ter visitas que, ao ouvir tocar o sino, não foi logo ao portão. “Senhor padre, bons‑dias, o que o traz por cá? Estava a fazer uma sesta, entre, entre” — e dirigiu‑o ao quintal. “Então é aqui que passa os seus dias o bravo capitão Celestino. Que esplendoroso roseiral”, e abeirou‑se da roseira. As rosas pareciam envernizadas, tão túrgidas que cantavam. Na verdade, viera ver o que havia atrás das sebes. As flores calaram‑no. O perfume, intensificado pela luz do Sol que, àquela hora, estava a pique, abafou o sermão que trazia preparado. Celestino foi amistoso. “Plantou caril, capitão? Anda por aqui um perfume intenso.” Misturados uns aos outros, picados pela luz, os aromas dos frutos e das flores adquiriam um odor inebriante, com várias notas confusas, cítricas, mas também fundas, amadeiradas e apimentadas. O jardim em volta, com o seu canteiro de cravos e sardinheiras vermelhas, as ervilhas‑de‑cheiro rosa‑vivo, a ameixoeira cuidadosamente podada, cada folha desenhada por um pintor apaixonado e por ele lacada, os condutos do sistema de rega inventado pelo jardineiro, os atilhos coloridos que prendiam os ramos mais altos das rosinhas cor de chá às paredes da casa, a paz do quintal, o amor posto em tudo, dissonante da figura sorumbática que tinha à sua frente e que, acabara de dar conta, não se calava, assim que se aflorou o pretexto dos cuidados de jardinagem que preservavam o quintal na perfeição em que estava. Celestino falava sozinho enquanto o padre tirava as suas conclusões. Explicou‑lhe terem segredo os alporques dos cravos, “há‑de morrer comigo, ninguém quer saber disto”. Gesticulava como há muito ansiasse ter com quem conversar e, ao mesmo tempo, como se o padre tivesse tocado o único tema que lhe importava. Falava dos cravos, dos vasos, dos cactos, do gladíolo (não o plantara) que fizera a surpresa de despontar junto ao alecrim, como se lhe falasse dos amores da sua vida. O capitão pareceu ao padre, que não ia para novo, tão velho, assim, à luz do início da tarde. As maçãs do rosto cortadas por dois veios paralelos ao nariz pontiagudo, o olho miúdo, muito claro, quase fechado, as sobrancelhas fartas, a barba comprida de muitos anos, branca e muito asseada e penteada. O padre viera com intenção de apurar as condições em que vivia. Queria levá‑lo à igreja a confessar‑se. “Sabe, importa‑me que não lhe falte nada. Ainda recordo a santa senhora sua mãe, Deus a guarde. Que seja pelo sossego da sua alma.” *** Nas manhãs nubladas, gostava de sair para ver o movimento. O seu vulto de sobretudo cinzento e chapéu alto de feltro passeava pela vila mudada e chamava a atenção dos mesmos que o haviam visto partir. A barba comprida, o rosto fechado, de poucos amigos, a pala de couro negro inspiravam aos habitantes aventuras misteriosas. O rumor dos vestidos arrastando‑se nas ruas azedava‑lhe o humor. Apenas aos meninos e às meninas, que o olhavam de baixo, entre as saias compridas e, de vez em quando, lhe punham a língua de fora, lançava sorrisos. Tinha pelas crianças a simpatia de um admirador de obras perfeitas.
Sentia‑as perenes e vivas, levadas pelas moças que, ainda novas, já usavam à cabeça o lenço do ressentimento, da dor e da crendice. Cortou a cabeça a um anão. Rachou uma mulher ao meio. Foi lá para o Congo que pegou fogo a um elefante. Não, foi em Salvador, e parece que era um bisonte. Guarda caveiras nas arcas da roupa e encanta serpentes à luz da Lua. As mulheres benziam‑se, punham as mãos à frente da boca para esconderem os dentes. Os homens soltavam gargalhadas e mandavam vir outra rodada. Os olhos das crianças brilhavam, de curiosidade e medo, imaginando o que haveria atrás da pala. No recreio do colégio, as crianças tapavam o olho e recriavam as aventuras do capitão misterioso. À noite, pediam às mães que lhes contassem como tinha sido a sua vida. Chegou quando? Por onde andou? Quantos matou? Quem o cegou? As mães contaram aos pais que Celestino tinha voltado à terra. Havia que afastá‑lo dos pequenos. Cedo, a casa do capitão adquiriu contornos de morada assombrada. As sebes sobre o muro eram verdes e densas, mas os espaços entre as folhas, dos quais se vislumbrava a sua sombra a caminhar no jardim e se ouvia a enxada a cavar a terra, soavam, a quem passava na rua, a trabalhos sinistros. Os vilões mudavam de passeio, desejosos de espreitarem através das folhas. Os meninos viam o figurão barbudo, pá às costas, tronco tatuado. Ao princípio, nem os cães se atreviam por aquelas bandas e, quando se atreveram, foram corridos à paulada pelo dono da casa. Pressentindo olhares atrás das sebes, Celestino espantava a vizinhança com urros e prometia‑lhes a morte. Pensando numa solução para dissuadir os curiosos, construiu um espantalho com os reposteiros esgarçados da sala e colocou‑o na horta. O espantalho abanava o manto ao vento. Avistando‑o, o caseiro vizinho disse à mulher que vira um fantasma no campo. A mulher julgou que o marido mentia e foi ver por ela. Essa noite não dormiu, com medo de que a morte lhes entrasse na cama. Deixaram de lhe falar e, de manhã, ela pôs‑se a caminho da confissão. “O capitão Celestino vendeu a alma ao diabo”, contou, aflita, ao padre Alfredo, “até lhe ergueu um altar no quintal. À noite, pinta a cara de sangue e anda de capa a falar na língua dos pretos.” O padre sossegou‑a, “reze cinco ave‑marias e acenda uma vela”. Mas o mal estava feito. Na lota, na feira, à entrada dos cafés, no passeio, o espantalho de veludo tornou‑se padroeiro da intriga. Fala com os espíritos e matou mais de um milhar de pretos. De noite, dança com o diabo. Espreitando entre as sebes, as três crianças encavalitaram‑se para espreitarem a casa do demo. Do capitão, nem sinal. O quintal florido estava calmo. Se ali vivia o diabo, era bom jardineiro. Com as botas nas mãos dadas de Raul, Pedro galgou o muro, com esforço. “Consegues vê‑lo?
E como é?”, perguntou Luzia, impaciente. Mas, em cima do muro, deixado por um diabrete adivinho, só viu um pires com três cubos de marmelada e três fatias de queijo curado.