Quarta Capa #16: A VEGETARIANA

Por Equipe Todavia

Ouça na íntegra o 16º episódio e o Na Voz de A VEGETARIANA, com Veronica Stigger. E para aquecer: leia um trecho de ATOS HUMANOS, de Han Kang.

 

Esta é a história de um corpo que deseja ultrapassar seus limites, uma obra de beleza e transgressão. Desde que foi lançado, A vegetariana de Han Kang impressionou leitores do mundo todo com a transformação de uma até então "recatada" esposa, que se rebela de forma silenciosa contra as tradições e violências que sofre. Com participações especiais de Gabi Barbosa (@umacertagabi) e do artista plástico Nuno Ramos, autor de Verifique se o mesmo, o Quarta Capa traz um percurso por esta narrativa marcada pelo sonho, pelo sangue e pelo silêncio.

 

Quarta Capa #16: A vegetariana, de Han Kang

 

Ouça um trecho de A vegetariana na voz de Veronica Stigger, autora de Sombrio Ermo Turvo.

 

Abaixo, disponibilizamos um trecho de Atos Humanos, romance de Han Kang com lançamento previsto para maio e já em pré-venda no nosso site.

Nossos corpos estavam empilhados uns sobre outros, em cruz.

O corpo de um homem desconhecido estava em cima da minha barriga; atravessado em um ângulo de noventa graus, sobre a barriga do homem, o corpo de um jovem desconhecido, também atravessado em um ângulo de noventa graus. O cabelo do jovem tocava meu rosto. O joelho do jovem estava apoiado no meu pé descalço. Eu conseguia ver tudo isso, pois eu cintilava, ainda colado ao meu corpo.

Eles se aproximaram. Rápidos, usando uniforme militar camuflado e capacete, com divisas no braço. Eles, em duplas, começaram a levantar nossos corpos e a jogar no caminhão militar. Com um movimento mecânico, como se carregassem sacos de cereais. Para não perder meu corpo, subi, cintilando, no caminhão, pendurando-me às bochechas, ao pescoço. Estranhamente, eu estava sozinho. Quer dizer, não podia encontrar os espíritos. Por mais que tenha espíritos em todo lugar, não podíamos nos ver ou sentir. A promessa de que nos encontraríamos no outro mundo era oca.

Meu corpo, junto com os outros corpos, foi carregado, balançando em silêncio. De tanto derramar sangue, meu coração parou, e o meu rosto, que ainda continuou a verter sangue, mesmo depois de o coração ter parado, estava fino e transparente como papel. Pareceu ainda mais desconhecido, pois foi a primeira vez que vi meu rosto de olhos fechados.

A noite avançava a cada instante. O caminhão, que havia saído da cidade, corria pela rua vazia, no meio do campo escuro. Ao subir o morrinho arborizado de carvalhos, surgiu um portão de ferro. Quando o caminhão parou por um momento, dois guardas se cumprimentaram com uma continência. Ecoou um som longo e agudo de metal — uma vez, quando os guardas abriram a porta, outra vez, quando a fecharam. O caminhão subiu o morro um pouco mais e parou no terreno baldio entre o prédio de concreto de um andar e o bosque de carvalhos.

Eles saíram da cabine do motorista. Após puxarem o trinco da traseira do caminhão, começaram a nos carregar, segurando nossos braços e pernas, novamente em duplas. Deslizando para o queixo, para a bochecha, enquanto seguia pendurado em meu corpo, olhei para um prédio de um andar, cujas luzes estavam acesas. Queria saber que prédio era aquele. Onde estava, para onde meu corpo iria.

Eles entraram no mato atrás do terreno baldio por ordem de uma pessoa que parecia ser um superior, empilharam novamente os corpos em cruz. Meu corpo, intercalado em segundo lugar, de baixo para cima, foi comprimido e achatado. Mesmo comprimido desse jeito, não havia mais sangue para escorrer. Com a cabeça inclinada para trás, meu rosto, de olhos fechados e boca entreaberta, parecia ainda mais pálido à sombra do bosque. Eles colocaram um saco de palha sobre o corpo do homem do topo, e agora o pagode de corpos tornara-se algo como o cadáver de um enorme animal com dezenas de pernas.

 

Depois de partirem, escureceu ainda mais. A tênue luz crepuscular no lado oeste do céu desapareceu lentamente. Eu estava sobre o pagode de corpos, cintilando, e via uma luz pálida atravessar as nuvens cinza que embrulhavam a meia-lua. A sombra do mato criada por aquela luz gravava estampas no rosto dos mortos, como estranhas tatuagens.

Acho que foi por volta da meia-noite que algo frágil e macio se aproximou e me tocou com calma. Sem saber de quem era aquela sombra sem rosto, nem corpo, nem fala, esperei. Queria achar a maneira certa de falar com um espírito, mas lembrei que nunca tinha aprendido isso em nenhum lugar.

Acho que aquele espírito também não sabia como falar. Mesmo não sabendo como iniciar uma conversa uns com os outros, podíamos sentir que pensávamos uns nos outros com toda a força. Quando aquilo por fim se afastou, como que resignado, voltei a ficar só de novo.

Ao anoitecer, repetiram-se coisas parecidas. Algo tocava minha sombra silenciosamente, e, a cada vez, era um espírito diferente. Nós, que não tínhamos mãos, pés, rosto ou língua, ficávamos imersos em pensamentos sobre quem seria o outro, encostando-nos nas sombras uns dos outros, e, no final, distanciávamo-nos sem conseguir trocar uma só palavra. Cada vez que uma sombra se afastava de mim, eu olhava para o céu. Queria pensar que a meia-lua coberta pelas nuvens também me olhava como uma pupila, mas aquilo era apenas uma pedra oca e prateada, um pedaço enorme de rocha deserta onde não havia vida.

Foi quando essa noite estranha e clara terminava, e a luz azulada da alvorada começava a se espalhar pelo céu negro, que me lembrei subitamente de você. Ah. Sim, você estava junto comigo. Até um porrete frio golpear o meu flanco de repente. Até eu cair como uma boneca de pano. Até eu erguer o braço em meio ao ruído de passos, que pareciam partir o asfalto em pedaços, e de tiros, que rasgavam o tímpano. Até eu sentir o sangue quente jorrar do flanco e se espalhar para os ombros e o pescoço. Até então, você estava comigo.

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