Trecho do livro
Nossos corpos estavam empilhados uns sobre outros, em cruz. O corpo de um homem desconhecido estava em cima da minha barriga; atravessado em um ângulo de noventa graus, sobre a barriga do homem, o corpo de um jovem desconhecido, também atravessado em um ângulo de noventa graus. O cabelo do jovem tocava meu rosto. O joelho do jovem estava apoiado no meu pé descalço. Eu conseguia ver tudo isso, pois eu cintilava, ainda colado ao meu corpo. Eles se aproximaram. Rápidos, usando uniforme militar camuflado e capacete, com divisas no braço. Eles, em duplas, começaram a levantar nossos corpos e a jogar no caminhão militar. Com um movimento
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Nossos corpos estavam empilhados uns sobre outros, em cruz. O corpo de um homem desconhecido estava em cima da minha barriga; atravessado em um ângulo de noventa graus, sobre a barriga do homem, o corpo de um jovem desconhecido, também atravessado em um ângulo de noventa graus. O cabelo do jovem tocava meu rosto. O joelho do jovem estava apoiado no meu pé descalço. Eu conseguia ver tudo isso, pois eu cintilava, ainda colado ao meu corpo. Eles se aproximaram. Rápidos, usando uniforme militar camuflado e capacete, com divisas no braço. Eles, em duplas, começaram a levantar nossos corpos e a jogar no caminhão militar. Com um movimento mecânico, como se carregassem sacos de cereais. Para não perder meu corpo, subi, cintilando, no caminhão, pendurando-me às bochechas, ao pescoço. Estranhamente, eu estava sozinho. Quer dizer, não podia encontrar os espíritos. Por mais que tenha espíritos em todo lugar, não podíamos nos ver ou sentir. A promessa de que nos encontraríamos no outro mundo era oca. Meu corpo, junto com os outros corpos, foi carregado, balançando em silêncio. De tanto derramar sangue, meu coração parou, e o meu rosto, que ainda continuou a verter sangue, mesmo depois de o coração ter parado, estava fino e transparente como papel. Pareceu ainda mais desconhecido, pois foi a primeira vez que vi meu rosto de olhos fechados. A noite avançava a cada instante. O caminhão, que havia saído da cidade, corria pela rua vazia, no meio do campo escuro. Ao subir o morrinho arborizado de carvalhos, surgiu um portão de ferro. Quando o caminhão parou por um momento, dois guardas se cumprimentaram com uma continência. Ecoou um som longo e agudo de metal — uma vez, quando os guardas abriram a porta, outra vez, quando a fecharam. O caminhão subiu o morro um pouco mais e parou no terreno baldio entre o prédio de concreto de um andar e o bosque de carvalhos.