Trecho do livro
Vem a mim, meu bom e velho Simão, a que todos chamam Pedro e por cuja santidade rezam, foste tu que me ensinaste a ser o que sou, Leão, entre todos os animais o mais bravo e valoroso, tu que me elevaste a chefe de todos os nus, pois foi sob a tua graça que me tornei invencível, dominei a floresta, conquistei reinos, matei e destrocei os inimigos sem misericórdia, arrancando-lhes as cabeças com uma só dentada, estripando-os com a força das minhas garras, comendo de suas carnes cruas e frescas e bebendo de seus sangues ainda quentes; Leão, cuja boca fede a mil mortes, este é quem sou, besta rude e intratável, de olhos vagos e impiedos
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Vem a mim, meu bom e velho Simão, a que todos chamam Pedro e por cuja santidade rezam, foste tu que me ensinaste a ser o que sou, Leão, entre todos os animais o mais bravo e valoroso, tu que me elevaste a chefe de todos os nus, pois foi sob a tua graça que me tornei invencível, dominei a floresta, conquistei reinos, matei e destrocei os inimigos sem misericórdia, arrancando-lhes as cabeças com uma só dentada, estripando-os com a força das minhas garras, comendo de suas carnes cruas e frescas e bebendo de seus sangues ainda quentes; Leão, cuja boca fede a mil mortes, este é quem sou, besta rude e intratável, de olhos vagos e impiedosos como o sol, e que agora, diante de ti, ergue as patas dianteiras para abraçar-te, meu bom e velho companheiro Simão, meu padrinho, suplico-te, abraça-me forte pelo menos uma vez nesta curta vida, tu sabes que eu não seria capaz de te magoar, vem, ó nobre companheiro, abraça-me sem temor, quero-te perto de mim neste dia que é o das minhas bodas com a Leoa das patas ligeiras e do pelo macio e dourado, abraça-me e sente o cheiro putrefato que sai de mim, um cheiro que, certifico-te, nunca me abandonará por mais que eu abdique de ser quem sou e como sou, um líder e um matador; a morte, como bem sabes, meu bom e velho Simão, se impregna na carne viva e, como um fungo agindo sobre um morango sadio e úmido, fá-la apodrecer; vem, Simão, ó príncipe dos homens, traze teu barco e deixa que ele, guiado por vontade tua e minha, nos conduza ao céu, onde nos esperam aqueles que convidaste para virem me saudar na mais bela festa de mais rico banquete: o destemido Tigre de bengala e cartola, o galhardo Porco do terno branco, o infesto Jacaré dos três mil dentes, o amargurado Macaco da cara pintada, o exultante Veado do laço no pescoço, a sobranceira Gata Ruiva das quatro luvas, a elegante Vaca do corpo apertado, o garboso Burro da carroça, a temível Cobra Grande do couro malhado, o irrequieto Percevejo de olhos largos, a pomposa Barata de casaca, o airoso Mosquito de charuto, o célere Pinguim do Polo, o encabulado Siri da casca cor de bronze, e muitos outros convivas a que não me cabe enumerar; vamos, Simão, meu caro, pede ao augusto Senhor que sopre mais forte as velas de teu barco para aproarmos logo à festa em que também a Leoa das patas ligeiras e do pelo macio e dourado me aguarda, minha doce Leoa, que esteve sempre ao meu lado, que cuidou de mim quando fui apanhado numa emboscada, pregado a uma árvore, tive o corpo lacerado por chicotes e facas, ela, a Leoa, vendo-me preso e torturado, emitiu o rugido mais violento e mais grave que podia alcançar, emitiu-o diante da entrada de uma caverna, para que, assim, o som ecoasse e se multiplicasse como se fosse legião de leões a rugir na floresta escura e não apenas uma leoa sozinha e assustada, a minha doce e única Leoa das patas ligeiras e do pelo macio e dourado, é ela que irei desposar hoje à noite, ó, Simão, meu prestativo Simão, pede, portanto, ao excelso Senhor que mande ainda mais vento para insuflar as velas e acelerar o barco, vamos, Simão, só a ti Ele escuta, tu que és a ponte de pedra entre céu e terra, de mim, como sabes, Ele não faz caso, carrego muito sangue nas minhas costas cansadas, as moscas já não me largam mais; vamos, Simão, já ouço o alegre canto dos convivas, um lindo canto sem mácula só possível de ser entoado por aqueles que não se lembram que vão morrer, vamos, Simão, meu bom e velho companheiro Simão, meu padrinho, dá-me um último abraço antes de entrarmos, isso, aperta-me forte contra teu peito, gosto de sentir teu hálito puro, tão diferente do meu, agora, vamos, partamos rumo a nosso destino: já não é mais tempo de comer peixe.