Quarta Capa #15: CRIME E CASTIGO

Por Equipe Todavia

Ouça o 15º episódio do Quarta Capa, o podcast da Todavia, e leia na íntegra a introdução de COMO LER OS RUSSOS, de Irineu Franco Perpetuo.

Como um livro escrito no século XIX consegue se atualizar a cada geração e ganhar novos significados? Para o tradutor Rubens Figueiredo, é preciso olhar para os detalhes. Este episódio começa em um sonho e termina com uma moeda, mas, no meio deste percurso, caminhamos pelos elementos que transformam Crime e castigo (Todavia, 2019) em um clássico único. Da angústia social em um tempo de transformações aos sentidos políticos e filosóficos das relações humanas determinadas pelo individualismo, o Quarta Capa de março é uma jornada pelos cubículos frios da obra de Fiódor Dostoiévski e pelo que ela provoca até hoje. 

 

Quarta Capa #15: Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski

 

Este episódio conta também com a participação de Irineu Franco Perpetuo, autor de Como ler os russos — um guia de leitura fascinante com lançamento em abril pela Todavia. Abaixo, leia na íntegra a introdução do livro.

 

Introdução

 

Leia sempre os russos: Dostoiévski,
Tolstói, Turguêniev, um pouco de Górki;
mas, sobretudo, o Dostoiévski da
Casa dos mortos e Crime e castigo.

Lima Barreto a Adour da Câmara, 1919 (1)

Se é possível escrever no Brasil um livro chamado Como ler os russos, é porque a questão “Por que ler os russos?” parece respondida de antemão. A literatura da Rússia vem sendo, há mais de um século, companheira tão constante de nossas jornadas intelectuais que não chegamos a ponderar no que há de espantoso em sua inserção numa sociedade em que a parcela de imigrantes russos ou descendentes de russos é tão escassa.

Para um descendente de italianos, que estudou o idioma no colégio e vive em uma cidade que reivindica preparar uma pizza melhor que a da pátria-mãe, a comparação com os russos parece uma gangorra. A grande presença de oriundi por aqui não nos garante um conhecimento mais do que superficial da literatura italiana, enquanto a reputação dos eslavos também é inversamente proporcional à quantidade de descendentes, mas no sentido contrário. Pessoas que nunca provaram kvas ou borche nem entraram em uma dacha debatem com profundidade e conhecimento de causa as glórias da literatura da terra de Dostoiévski e Tolstói e, entre os tradutores e professores universitários de russo, abundam sobrenomes latinos. A literatura russa, como, digamos, o cinema norte-americano e a música pop britânica, parece nos pertencer tanto quanto a seu país de origem.

“A chegada do romance russo ao Brasil foi uma pequena parcela do processo internacional deflagrado na França. Outros países deram sua cota de contribuição, mas a influência francesa foi determinante, especialmente no quinhão que nos cabe”, explica Bruno Barretto Gomide, incansável estudioso da recepção da literatura russa por aqui. Afinal, como afirmava na época, com certo desgosto, Monteiro Lobato: o Brasil estava reduzido a “colônia mental da França”, “espécie de Senegal antártico”. (2) E, como conta Gomide, o “romance russo era a grande sensação europeia em meados da década de 1880. Na verdade, foi ‘inventado’ para consumo internacional nesse período, quando surgem traduções em escala industrial e livros de crítica que, de forma pioneira, deram o tom — e estabeleceram os limites — do que seria dito depois”. (3) Tudo isso impulsionado pela mudança de atitude da França com relação à Rússia: após se enfrentarem na Guerra da Crimeia (1853-6), os países se uniam diante da ascensão da Alemanha. (4)

Gomide identifica, assim, duas “febres de eslavismo” no Brasil, na primeira metade do século XX. (5) Nos anos 1930-5, são 63 livros russos editados por aqui, sendo quinze de Górki, onze de Dostoiévski e dez de Tolstói. (6) Para além dos números, “os tempos da primeira febre coincidiram com a descoberta adolescente de Dostoiévski por parte de muitos escritores que constituíram a veia mais criativa da ficção brasileira nos anos seguintes”, como “Clarice Lispector, Lúcio Cardoso, Nelson Rodrigues e muitos outros”. (7) No embalo da Segunda Guerra Mundial, a “segunda febre”, em 1943-5, é ainda mais impressionante, com números nunca superados: 83 volumes de literatura russa — uma média de 3,5 livros por mês, quase um lançamento por semana, com destaque para Dostoiévski (dezessete títulos), Tolstói (catorze) e Górki (oito). (8) Na mesma época, estreava como tradutor o principal mediador entre a cultura russa e a brasileira no século XX — Boris Schnaiderman (1917-2016), que, em 1960, seria o primeiro professor do curso de letras russas da Universidade de São Paulo. Schnaiderman garantiu que a temperatura da “febre de eslavismo” jamais baixasse, formando e influenciando gerações de professores e tradutores.

Mas por que essa literatura “pegou” tanto entre nós? Erich Auerbach afirma:

Parece que os russos conservaram para si uma imediaticidade das vivências como já era difícil encontrar na civilização ocidental no século XIX; um estremecimento forte, vital, ou moral, ou espiritual, atiça-os imediatamente nas profundezas dos seus instintos, e eles caem num instante de uma vida calma e uniforme, por vezes quase vegetativa, para precipitar-se nos mais terríveis excessos, tanto práticos como espirituais. Quando os grandes russos, especialmente Dostoiévski, tornaram-se conhecidos na Europa Central e Ocidental, o imenso potencial espiritual e a imediatez de expressão que seus maravilhados leitores encontraram em suas obras pareceram uma revelação de como mistura de realismo e tragédia podia finalmente alcançar sua plena realização. (9)

Talvez a razão também tenha a ver com a posição única de que a literatura desfrutou na sociedade russa historicamente. “Seja o que for nossa literatura, seu significado, em qualquer caso, é muito mais importante para nós do que possa parecer: é nela, e apenas nela, que está toda nossa vida intelectual e a poesia de nossa vida”, escreveu, em 1846, o crítico literário Vissarion Bielínski (1811-48). (10) No fim do livro, discutiremos se essa centralidade se mantém nos dias de hoje. De qualquer forma, estamos falando de um país em que atores dão recitais de poesia, em que a televisão tem mesas-redondas discutindo literatura e em que escritores fazem concorridas conferências com cobrança de ingressos. E, se não mais ocupam, por muito tempo ocuparam posição privilegiada.

Conta Tatiana Tolstáia:

Ao longo de toda a história da literatura russa, o escritor russo nunca foi visto pelo público leitor como “simplesmente” um poeta, jornalista, filósofo ou escriba — ou seja, uma pessoa exprimindo com liberdade seus pensamentos ou sentimentos, ou meramente entretendo o leitor. O escritor russo sempre foi visto como um profeta ou pregador, um livre-pensador perigoso, ou um revolucionário. A própria habilidade em manipular palavras e articular pensamentos colocava o indivíduo em uma posição suspeita. A palavra era vista como uma arma muito mais temível do que veneno ou punhais. Um assassino podia ser condenado “apenas” a uma longa sentença de trabalhos pesados, mas uma pessoa poderia receber pena de morte por ler poemas proibidos.

Esse é um ponto de vista maravilhoso. Proclama a primazia da literatura sobre a vida, dos sonhos sobre a realidade, da imaginação sobre os fatos. Ele diz: A vida é nada — uma neblina, uma miragem, fata morgana. Mas a palavra, seja falada ou impressa, representa um poder maior do que o do átomo. Essa é uma visão inteiramente russa da literatura, sem paralelo no Ocidente. E todo mundo na Rússia, aparentemente, compartilha dela: os tsares e seus escravos, censores e dissidentes, escritores e críticos, liberais e conservadores. Quem articulou a Palavra realizou um Ato. Assumiu todo poder e responsabilidade. Ele é perigoso. É livre. É destrutivo. É rival de Deus. E, por essa razão, todos esses mágicos ousados, audazes, sinceros, poderosos, de Aleksandr Radíschev, no final do século XVIII, a Andrei Siniávski, no XX, jogaram com vida e morte. (11)

Sem pretensões acadêmicas ou didáticas, nem vocação para se transformar em manual, este livro pretende ajudar o leitor brasileiro a se familiarizar com a produção destes “rivais de Deus”. Uma mera lista de escritores russos daria, possivelmente, um volume maior do que este; portanto, as lacunas são inevitáveis — e eu assumo essa responsabilidade. Assim como Púchkin fez em A noiva do capitão, cada capítulo é encimado por uma epígrafe — pois não há como falar de literatura russa e não reverenciar seu nome principal.

A ideia foi produzir uma narrativa em ordem cronológica, tomando como referência a recepção dos escritores russos no Brasil. Assim, haverá divergências em relação tanto a manuais russos como de outros países. E, dado que se trata de um recorte brasileiro, esta obra, embora redigida integralmente em solo russo, buscou utilizar tanto quanto possível os estudos de Boris Schnaiderman e seus discípulos diretos ou indiretos, tomando a liberdade de uniformizar a grafia dos termos e nomes russos, para não confundir o leitor em uma barafunda de palavras eslavas escritas de forma distinta (como todos na russística são bastante sensíveis no que se refere à transliteração, de antemão peço desculpas aos autores citados).

Permiti-me ainda acrescentar nas citações, entre colchetes, datas de nascimento e morte e eventuais informações complementares que julguei úteis para o leitor. E cada livro aparece aqui designado apenas por um título (por exemplo, Memórias do subsolo, e não Notas do subterrâneo, a despeito de qual tenha sido a fórmula adotada pelo autor citado). Outra liberdade que me permiti foi, no caso de bibliografia estrangeira, traduzir eu mesmo o que citei, sem reproduzir em nota de rodapé o texto original — o que, a meu ver, carregaria de forma desnecessária a leitura.

Por fim, inspirado por A History of Russian Literature, da Oxford University Press (um catatau que sobrepuja largamente o presente volume em tamanho, escopo e complexidade), resolvi, no final de cada capítulo, introduzir a seção “Em foco”, destacando um tema digno de maior esmiuçamento. Há ainda um anexo para explicar o peculiar mundo dos nomes russos.

Bielínski disse, em 1846, que “parece que não há nada mais fácil, e, na realidade, nada é mais difícil do que escrever sobre a literatura russa”. (12) Espero, contudo, que tamanha dificuldade na escrita não se traduza em dificuldade de leitura.

 

Em foco: A tradução russa

Veremos que uma das principais lacunas da recepção da literatura russa no Brasil é a poesia, e não creio ser equivocado atribuir isso às dificuldades de tradução poética, como faz Roman Jakobson:

Quando, num poema de Maiakóvski, cada país chega ao homem do futuro com suas melhores oferendas, a Rússia traz a poesia: “De cujas vozes a potência mais alta se entrelaçou no canto!”. O Ocidente entusiasma-se com a arte russa: o ícone e o filme, o balé clássico e os novos experimentos teatrais, o romance de ontem e a música de hoje. Mas a poesia, talvez a melhor das artes russas, ainda não se tornou verdadeiramente um artigo de exportação. Ela é por demais íntima e indissoluvelmente ligada à língua russa para que suporte as adversidades da tradução. (13)

Outro desequilíbrio reside no conhecimento que temos por aqui da literatura russa do século XIX em contraste com aquela do século XX, e o poeta Joseph Brodsky — que o exílio nos Estados Unidos forçou a pensar com especial pungência nas questões de comunicabilidade entre idiomas e culturas — também o atribui a questões de tradução, embora por motivos diferentes:

O que cria essa barreira é uma realidade histórica, que, durante a maior parte do século, foi politicamente diferente da realidade dos domínios das línguas germânicas e romance. Isso explica de muitas maneiras a popularidade da literatura russa do século XIX e a relativa ausência ou ignorância no Ocidente da literatura russa do século XX — simplesmente porque o que foi revelado de nossa parte era, de fato, intraduzível, não em termos linguísticos, mas em termos da realidade social. A rigor, em termos do contexto social, o que estava acontecendo nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e na Alemanha [acontecia também] no século XIX russo. No século XX, uma sociedade completamente nova emergiu. Então, traduzir para o inglês uma frase de prosa russa representando a vida num apartamento comunal é praticamente impossível. Em primeiro lugar, o que é um apartamento comunal? Então, praticamente cada frase exigiria uma nota de rodapé substancial. (14)

Afinal, como afirma Boris Schnaiderman, a tradução não é uma mera operação linguística, “para traduzir, fazemos transposição de um texto para uma outra cultura”. (15)

Para além dessas questões mais universais, a difusão da literatura russa no Brasil encontrou, por décadas, uma dificuldade adicional: depender quase exclusivamente de traduções indiretas. E, aí, as vilãs são as famigeradas traduções francesas.

Não se trata, aqui, de crucificar traduções indiretas em geral. Boa parte do prestígio e do conhecimento dos autores russos em nosso país se deve a traduções indiretas, não raro feitas por escritores de renome, dotados de senso de estilo, e conhecedores de seu ofício. Tampouco se devem execrar as modernas traduções francesas, realizadas com rigor e apuro.

O problema é que, no final do século XIX e começo do século XX, sua qualidade variava, com uma gama que “ia do aceitável à mutilação”, como descreve Gomide: “Halpérine-Kaminsky elaborou, por sua conta, um novo final para Os irmãos Karamázov. A lenda do Grande Inquisidor ficou irreconhecível. E os pedaços excluídos do romance viraram, milagrosamente, uma ‘outra’ obra de Dostoiévski, Les Précoces”. (16)

Assim Gomide resume as principais mudanças que os tradutores/traidores daquela época faziam nos livros russos:

1) quebra e redução de parágrafos: períodos mais extensos são fragmentados em diálogos curtos. A alteração é mais problemática nas extensas explanações filosóficas e metafísicas e nas exasperações da consciência das personagens; 2) nivelamento da linguagem: perde-se o complexo jogo entre cômico, melodramático e trágico — a alternância vertiginosa de gêneros presente em Dostoiévski fica reduzida a um registro sentimental; 3) adições de texto, às vezes capítulos inteiros; 4) mudança de léxico para termos mais suaves; 5) manutenção de algumas expressões típicas em russo para dar cor local. (17)

Uma empreitada pioneira de tradução direta foi a do imigrante russo Georges Selzoff (Iúri Zéltzov), cuja Edição Cultura publicou, entre 1930 e 1932, uma Bibliotheca de Auctores Russos, com doze títulos vertidos do original. (18) Louvável, o esforço de Selzoff infelizmente se revelou efêmero. No pós-guerra, mostraram-se mais sustentáveis as iniciativas de outros dois emigrados: de Boris Schnaiderman e da não suficientemente valorizada Tatiana Belinky (1919-2013). Costuma-se considerar a tradução de Crime e castigo, de Paulo Bezerra, publicada pela Ed. 34 em 2001, como o “marco zero” de um momento em que a tradução direta parece ter se firmado de forma definitiva no mercado brasileiro, com a proliferação de tradutores e de editoras interessadas em literatura russa.

 

1. Apud Bruno Barretto Gomide, Dostoiévski na rua do Ouvidor: A literatura russa e o Estado Novo. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2018, p. 29.

2. Apud Olivier Compagnon, “Como era belicoso o meu francês: As elites intelectuais brasileiras e a França no contexto da Primeira Guerra Mundial”. In: Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon e Sílvia Capanema P. de Almeida (Orgs.), Como era fabuloso o meu francês!: Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XX). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7 Letras, 2017.

3. Bruno Barretto Gomide, Da estepe à caatinga: O romance russo no Brasil (1887-1936). São Paulo: Edusp, 2011, p. 17.

4. Gomide conta que “décadas de demonização do Império Russo foram substituídas por olhos mais doces depois que a França foi esmagada no campo de batalha pela Prússia” (Ibid., p. 43).

5. Tais “febres” acometiam não apenas os adultos, como os leitores do futuro. Segundo Gomide, “a revista infantil O Tico-Tico, imensamente popular no país na primeira metade do século xx, tem dezenas de menções a Tolstói em forma de contos, anúncios de livros e máximas em seções como ‘Gavetinha do Saber’” (Bruno Barretto Gomide, Dostoiévski na rua do Ouvidor, op. cit., p. 199).

6. Ibid., pp. 55-6.

7. Ibid., p. 44.

8. Ibid., pp. 89-90.

9. Erich Auerbach, Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2002, pp. 468-9.

10. Vissarion Bielínski, “Pensamentos e observações sobre a literatura russa”. In: Bruno Barretto Gomide, Antologia do pensamento crítico russo (1802-1901). São Paulo: Ed. 34, 2013, p. 115.

11. Tatiana Tolstáia, Pushkin’s Children. Boston; Nova York: Houghton Mifflin, 2003, pp. 80-1.

12. Vissarion Bielínski, op. cit., p. 122.244

13. Roman Jakobson, A geração que esbanjou seus poetas. Trad. de Sonia Regina Martins Gonçalves. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 47.

14. Joseph Brodsky, A musa em exílio. Trad. de Diogo Rosas. Belo Horizonte; Veneza: Âyiné, 2018, p. 404.

15. Boris Schnaiderman, Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 28.

16. Bruno Barretto Gomide, Da estepe à caatinga, op. cit., p. 118.

17. Ibid., p. 121.

18. Denise Bottmann, “Georges Selzoff, uma crônica”. Tradução em Revista, Rio de Janeiro, puc, n. 14, 2013/1, p. 208.

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