Trecho do livro
Se é possível escrever no Brasil um livro chamado COMO LER OS RUSSOS, é porque a questão “Por que ler os russos?” parece respondida de antemão. A literatura da Rússia vem sendo, há mais de um século, companheira tão constante de nossas jornadas intelectuais que não chegamos a ponderar no que há de espantoso em sua inserção numa sociedade em que a parcela de imigrantes russos ou descendentes de russos é tão escassa. Para um descendente de italianos, que estudou o idioma no colégio e vive em uma cidade que reivindica preparar uma pizza melhor que a da pátria-mãe, a comparação com os russos parece uma gangorra. A grande presença de ori
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Se é possível escrever no Brasil um livro chamado COMO LER OS RUSSOS, é porque a questão “Por que ler os russos?” parece respondida de antemão. A literatura da Rússia vem sendo, há mais de um século, companheira tão constante de nossas jornadas intelectuais que não chegamos a ponderar no que há de espantoso em sua inserção numa sociedade em que a parcela de imigrantes russos ou descendentes de russos é tão escassa. Para um descendente de italianos, que estudou o idioma no colégio e vive em uma cidade que reivindica preparar uma pizza melhor que a da pátria-mãe, a comparação com os russos parece uma gangorra. A grande presença de oriundi por aqui não nos garante um conhecimento mais do que superficial da literatura italiana, enquanto a reputação dos eslavos também é inversamente proporcional à quantidade de descendentes, mas no sentido contrário. Pessoas que nunca provaram kvas ou borche nem entraram em uma dacha debatem com profundidade e conhecimento de causa as glórias da literatura da terra de Dostoiévski e Tolstói e, entre os tradutores e professores universitários de russo, abundam sobrenomes latinos. A literatura russa, como, digamos, o cinema norte-americano e a música pop britânica, parece nos pertencer tanto quanto a seu país de origem. “A chegada do romance russo ao Brasil foi uma pequena parcela do processo internacional deflagrado na França. Outros 8 países deram sua cota de contribuição, mas a influência francesa foi determinante, especialmente no quinhão que nos cabe”, explica Bruno Barretto Gomide, incansável estudioso da recepção da literatura russa por aqui. Afinal, como afirmava na época, com certo desgosto, Monteiro Lobato: o Brasil estava reduzido a “colônia mental da França”, “espécie de Senegal antártico”. E, como conta Gomide, o “romance russo era a grande sensação europeia em meados da década de 1880. Na verdade, foi ‘inventado’ para consumo internacional nesse período, quando surgem traduções em escala industrial e livros de crítica que, de forma pioneira, deram o tom — e estabeleceram os limites — do que seria dito depois”. Tudo isso impulsionado pela mudança de atitude da França com relação à Rússia: após se enfrentarem na Guerra da Crimeia (1853-6), os países se uniam diante da ascensão da Alemanha. Gomide identifica, assim, duas “febres de eslavismo” no Brasil, na primeira metade do século xx. Nos anos 1930-5, são 63 livros russos editados por aqui, sendo quinze de Górki, onze de Dostoiévski e dez de Tolstói. Para além dos números, “os tempos da primeira febre coincidiram com a descoberta adolescente de Dostoiévski por parte de muitos escritores que constituíram a veia mais criativa da ficção brasileira nos anos seguintes”, como “Clarice Lispector, Lúcio Cardoso, Nelson Rodrigues e muitos outros”. No embalo da Segunda Guerra Mundial, a “segunda febre”, em 1943-5, é ainda mais impressionante, com números nunca superados: 83 volumes de literatura russa — uma média de 3,5 livros por mês, quase um lançamento por semana, com destaque para Dostoiévski (dezessete títulos), Tolstói (catorze) e Górki (oito). Na mesma época, estreava como tradutor o principal mediador entre a cultura russa e a brasileira no século xx — Boris Schnaiderman (1917-2016), que, em 1960, seria o primeiro professor do curso de letras russas da Universidade de São Paulo.