[N.A.] Ana Ban compartilha aqui seu diário da quarentena

Por Equipe Todavia

A maior parte das coisas aqui na editora é feita por diversas pessoas em conjunto. E não porque temos uma equipe numerosa; ao contrário: pelo tamanho enxuto é que precisamos construir praticamente tudo de forma coletiva.

Completamos dois meses de isolamento e decidimos que não dá mais para ficar tão longe dessa turma — escritoras e escritores, designers gráficos, ilustradoras e ilustradores, tradutoras e tradutores. Fizemos, então, um convite aberto a esse pessoal: o que vocês gostariam de compartilhar com os leitores da Todavia neste período?

Este é o [N. A.]. 

Emprestamos a abreviação “nota do autor” porque são essas autoras e esses autores que, por meio de suas criações, nos ajudam a construir a editora, diariamente. Todas as terças e sábados, você verá aqui o que nossa turma escolheu compartilhar.

Obrigada pela visita :) 

#VamosVirarEssaPágina

 

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Ana Ban é tradutora da Todavia e compartilha um texto sobre a nova rotina de trabalho em meio a pandemia:

 

Isolamento social: Plano D

 

Depois de fazer faculdade de jornalismo e trabalhar na imprensa (Plano A, 1992), virar tradutora (Plano B, 2001) e fazer um mestrado em editoração para negociar direitos e licenciamentos de livros (Plano C, 2013), este ano de 2020 trouxe um inesperado Plano D que não estava nos meus planos: técnica de live.

 

Em 2013, eu me mudei de São Paulo para Nova York para fazer um mestrado de editoração na Universidade Pace. Em um apartamentinho no Brooklyn com as paredes que descascam e vista para uma avenida tipo marginal Pinheiros (sem o rio), eu fui feliz nestes seis anos e meio. Além de ter assistido a 103 shows, tive a bênção de ver palestras de inúmeros autores queridos e/ou traduzidos e colecionar livros autografados — de Rob Lowe a Kazuo Ishiguro.

2020. Em janeiro, vi o Philippe Lançon duas vezes e escrevi, aqui, sobre o livro dele, O retalho, lançado pela Todavia.Também vi o Jamie Oliver e o Neil deGrasse Tyson. Fui a um jogo da NBA e vi no mesmo palco Patti Smith, The National, Iggy Pop e Laurie Anderson. 

No dia 12 de março, o apocalipse zumbi tomou conta da cidade e o papel higiênico acabou. Foram uns dias meio apavorantes, quando coisas estranhas como tocarem insistentemente meu interfone às 4h da manhã começaram a acontecer. No dia 18, fugi para a minha segunda casa, a mais ou menos uma hora da cidade grande, para fazer o isolamento social longe do centro mundial da vez da pandemia. 

Aqui é muito bonito. Eu tenho um lugar cativo na melhor janela, de onde posso ver os bambis, os esquilos e os perus selvagens brincando no jardim. Nestes oitenta dias enfurnada, vi as árvores peladas e o chão coberto de neve se transformarem em uma explosão verde. Nunca tinha presenciado essa evolução, porque só costumava vir para cá aos fins de semana e alguns feriados.

Ficaram para trás ingressos para mais uns dez shows. Tudo cancelado (ou postergado para deus-sabe-quando). Cada reembolso que cai na conta é uma punhalada no coração. 

Mas, longe de ser só um mimimi, o cancelamento de shows afetou minha vida profundamente. Meu marido, Krishna Das, é músico. Ele é um dos cantores mais famosos do mundo no nicho minúsculo dele, que é cantar mantras indianos (chama kirtan). Está tudo cancelado nos próximos meses. Nestes últimos oitenta dias, era para ele ter passado por: Índia, México, Havaí, Califórnia, Virgínia e Nova York. Ainda ia ter Novo México e Colorado. O pessoal da Grécia ainda não tirou do calendário as apresentações no fim de setembro…

De repente estávamos os dois aqui trancados com os ursos passeando lá fora.

Eu tinha largado meu emprego de gerente de direitos e contratos em uma editora independente de Nova York e estava procurando um trabalho novo. Isso entrou em pausa. Mas, graças à Todavia, a mim não falta o que fazer: primeiro estava terminando a tradução do maravilhoso O homem que viu tudo, de Deborah Levy, e em seguida me pegaram de surpresa mandando o trabalho que eu desejava secretamente, e eu estou aqui me ralando e me refestelando com uma das cotraduções mais difíceis que já fiz na vida, que é o último volume da trilogia Wolf Hall, de Hilary Mantel.

Meu marido, no entanto, começou a ficar inquieto. Não podia mais viajar nem cantar ao vivo. O público estava triste com os cancelamentos. Quando percebemos que a situação não iria se resolver em pouco tempo, ele resolveu começar lives semanais no YouTube. Já há bastante tempo uso o celular para colocar alguns shows dele online, então começamos assim…

A primeira sessão (1) foi só com o celular. Todo o mundo reclamou que não conseguia escutar quando ele falava. Na segunda semana (2), usamos o pequeno mixer que ele tem no palco para mandar o som para um alto-falante. Melhorou um pouco, mas não estava bom. Na terceira semana (3), começamos a usar uma câmera e um microfone externo, o que implica em usar um segundo programa no computador para mandar o stream para o Youtube. Na quarta semana (4), instalamos uma interface que recebia o sinal do mixer, mas ainda não estava bom. Então, na quinta semana (5), chegou uma mesa de som que conectava bem direitinho o microfone do instrumento, o da voz, à percussão eletrônica no iPad e fazia com que o som sempre fosse transmitido em dois canais, com possibilidade de ajustar o volume da voz, que é diferente quando fala e quando canta; nessa semana também chegou o anel de iluminação usado por nove entre dez youtubers. Na sexta semana (6), foi tudo bem, sem mudanças. Mas como não dá para viver sem emoção, na sétima semana (7), começamos a transmitir para sete canais digitais diferentes, usando mais um programa intermediário. 

Chato ler esse parágrafo, né, minha filha? Mais chato ainda foi ter que, de um dia para o outro, e de semana a semana, aprender tudo isso e me transformar em técnica de live. Aprendi OBS, crosspost, simulcast, Super Hearts, Stars etc. e tal. Quer cantar no Zoom? Pergunte-me como não fazer o som pipocar.

Assim seguimos, toda semana (agora já partindo para a 11a), tentando agradar aos reclamões que não conseguem aumentar o som do próprio computador. Ultimamente está difícil passar um dia sem uma sessão ao vivo com o Japão ou com a Argentina, uma participação exclusiva em um grupo do Facebook ou uma gravação para um especial que vai estrear no YouTube.

Inesperadamente, acabei aprendendo uma coisa totalmente nova que, as pessoas me dizem, é bom saber. Pode ser, mas este Plano D não é para mim. Tomara que, quando tudo isto acabar, minha função volte a ser negociar direitos de audiolivros e publicações no estrangeiro. Mas, independentemente do rumo que as coisas tomarem, continuarei sempre com as traduções, que acredito ser a minha vocação e o trabalho que me traz mais prazer do que dor de cabeça.

E agora preciso ir andando porque Henrique VIII e Thomas Cromwell me esperam na Torre de Londres. Assim, logo, logo, você também vai poder ler a trilogia Wolf Hall completa!

 

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Ana Ban é tradutora dos livros INCIDENTES NA VIDA DE UMA MENINA ESCRAVA e OPERAÇÃO ABAFA. Atualmente está trabalhando na tradução da trilogia de Hilary Mantel, que a Todavia vai publicar no segundo semestre.

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