O sobrevivente que não tem raiva nem rancor

Por Ana Ban

A tradutora Ana Ban acompanhou o lançamento da versão em inglês de O RETALHO, nos EUA (antes da pandemia), e relata sua impressões

 

No dia 7 de janeiro de 2015, dois homens fortemente armados entraram na redação do jornal satírico parisiense Charlie Hebdo e atiraram a sangue frio nos participantes da reunião de pauta da publicação. O crítico cultural e colunista Philippe Lançon, acertado por um tiro que destruiu o lado direto de sua mandíbula, fingiu-se de morto e viveu para contar sua história — no Brasil, publicada pela Todavia com tradução de Julia Rosa Simões. 

 

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O rosto de Philippe Lançon não é desfigurado. Ele sorri, bebe água, tem dicção perfeita — tanto em francês quanto em inglês. Suas mãos delicadas de escritor não aparentam ter cicatrizes. Ele esteve em Nova York em janeiro de 2020 e participou de alguns eventos para promover o lançamento da versão em inglês de seu livro, O retalho . Vê-lo ao vivo, em carne e osso, é um alívio depois de ler o volume que narra em detalhes os nove meses de intervenções cirúrgicas e a recuperação que sucederam  o ataque terrorista que deixou doze mortos e onze feridos.

Ele conta que demorou bastante para conseguir escrever o que aconteceu naqueles dois minutos dentro da sala de reunião. “Quando os atiradores saíram de lá, é muito interessante, eles não disseram ‘matamos as pessoas do Charlie’, disseram ‘matamos o Charlie. Isso significa que há uma confusão entre o símbolo que representa o jornal e as pessoas que eles mataram”, avalia Lançon. “Do ponto de vista do escritor, tenho que pensar no que ele [o assassino] estava pensando, mas acho que tinha muito pouca coisa na cabeça porque a tensão de um momento assim não é só para as vítimas, é também para os executores. Eles também estão sob pressão, então acho que estavam com pressa, e foram embora supondo que tinham cumprido a tarefa, mas não fizeram todo o trabalho, porque o jornal, que na época estava à beira da falência, continua existindo.”

Esse exercício de assumir um ponto de vista externo ao acontecimento, apesar do próprio Lançon estar em seu centro, não foi de caso pensado. Ele descreve: “Na hora que eu acordei entre a vida e a morte, sedado de morfina, com tubos por todos os lados, não pensei: ‘Ah, agora você vai ser repórter da sua condição’. Foi um reflexo do jornalista com trinta anos de profissão nas costas, eu me vi como repórter da minha própria situação. Foi natural e imediato, desde a cena do atentado. Eu tive a distância que o repórter precisa ter. Essa disciplina ajudou o homem naquele momento, porque tomar essa distância permitiu a uma parte de mim mesmo não sofrer o que o outro lado sofria. E foi útil bem mais tarde, quando eu buscava um distanciamento para escrever o livro”.

Se precisou puxar pela memória para contar o que aconteceu dentro daquela sala, as lembranças dos meses seguintes na ala cirúrgica, internado no hospital e em uma clínica de recuperação, contaram com a ajuda quase inesperada de material que foi, em grande parte, escrito sem a intenção de registro. “Eu não tinha um diário, mas havia várias fontes”, Lançon explica. “Eu escrevia muitos e-mails aos meus amigos e à minha família, mesmo que eles passassem o dia comigo, eu descrevia como tinha sido a noite. Minha intenção era realmente escrever para eles, tentava até ser divertido e fazer com que dessem risada com aquilo — como leitor, gosto de ler coisas que não me aborrecem, mesmo que sejam coisas difíceis, que exijam certa reflexão. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha que ser preciso, então esses e-mails fizeram as vezes de um diário.”

Lançon descreve sua situação como o centro da ação em seu quarto de hospital como algo “que me libertou totalmente de qualquer responsabilidade, a não ser lutar para me reconstruir. Então, a minha situação, a mais desconfortável possível, tornou-se também para mim a mais confortável. Acredito que ela me deu uma liberdade extraordinária, na minha cama, no meu quarto, de receber, escutar e compreender todos que entravam ali. Eu não tinha mais nada para fazer. Tornei-me uma espécie de superjornalista, imóvel, empático, absorvendo todo o possível da vida de todos os amigos e de todos os cuidadores que passavam por ali”.

“Eu rapidamente senti”, ele prossegue, “que uma parte do meu trabalho era consolar as pessoas próximas a mim. E, claro, a melhor maneira de as consolar era melhorar o mais rápido possível e escrever. Escrever foi muito importante, logo publiquei meus primeiros artigos no Libération [jornal diário francês onde trabalhava havia mais de vinte anos] e no Charlie.” Seu primeiro artigo saiu apenas uma semana depois do atentado, na edição impressa de 14 de janeiro do Libération e, segundo ele, causou um grande mal-entendido, fez as pessoas — principalmente os colegas jornalistas — acreditarem que a recuperação seria imediata: “Ninguém se deu conta do estado em que eu estava. E o mais surpreendente é que as pessoas que trabalhavam com livros, que faziam crítica literária, não sabiam que aquilo que a gente escreve não é literalmente verdade, portanto, aquilo que eu pude escrever naquele momento não foi, de maneira nenhuma, o reflexo do estado físico e mental em que eu me encontrava. Mas não tinham como entender e não queriam entender. O que eles queriam era que eu fosse trabalhar, porque teria significado que esse acontecimento — traumático para todo o mundo, e particularmente para a comunidade profissional à qual eu pertencia — tinha escorregado feito um sabonete. Naturalmente, não foi o caso”.

Ajudaram a confeccionar o livro também os cadernos que ele usava para se comunicar durante os longos períodos em que ficou impedido de falar por causa das operações na mandíbula. “São cadernos bem estranhos. Por exemplo, quando eu conversava com alguém, tinha as perguntas que eu fazia anotadas, mas não as respostas, porque as respostas eram faladas”, Lançon descreve. A terceira ferramenta usada por ele foi o diário que seu irmão manteve durante seis meses. “Eu nem sabia que ele tinha feito isso, e foi muito útil porque enquadrava histórias no sentido mais banal, das datas em relação a certas coisas, com horários precisos”, conta.

Todo esse material já estava digerido quando ele começou a escrever o livro, cerca de dois anos e meio depois do atentado. Chama a atenção a ausência total de raiva ou rancor no relato. “Escrevi em um estado de prazer e quase de tranquilidade e candura. Não havia raiva quando eu estava escrevendo, eu estava em Roma, em um lugar muito bonito, com minha mulher, o tempo estava bom e, no fim, este livro que conta uma experiência difícil foi escrito com relativa facilidade, bem rápido [em seis meses], na maior parte em um estado de paz. O fato de eu estar em meio a toda aquela beleza me ajudou a encontrar uma das coisas mais importantes na escrita, que é o tom. Escrever é sempre uma música; isso é um clichê, mas é verdade”, Lançon avalia. 

“Quando eu escrevi este livro, não sabia exatamente a razão por que escrevia. E, para dizer a verdade, isso não me importava. Depois de escrever, me pareceu que era uma narrativa que buscava restabelecer a fluidez, a continuidade das vidas, não apenas da minha, mas de todas aquelas que tinham sido brutalmente interrompidas ou transformadas pelo ataque. E agora acho que, finalmente, olhando do ponto de vista do escritor e do leitor, é o que eu busco na literatura: a continuidade. Aquilo que a literatura me proporciona, ao mesmo tempo como autor e como leitor, é a capacidade de restituir o fluxo da vida que tantas vezes é brutalizado e interrompido”, Lançon explica. “Sempre existe em um livro um ato de consolação. Ele permite, por meio de um processo de transformação, fazer um relato de uma forma mais ou menos concreta, dar continuidade aos acontecimentos, algo que a vida jamais proporcionará.”

Ele tem consciência de que uma obra — principalmente se for bem-sucedida, como esta foi, especialmente na França, onde amalhou alguns dos prêmios literários mais importantes do país, como o Prêmio Femina e o Prêmio du Roman-News, e vendeu centenas de milhares de cópias — transforma a vida das pessoas retratadas. “A diferença entre ficção e não ficção, para mim, mesmo enquanto leitor, não interessa muito. Um romancista é responsável pelos personagens que imagina, mas o autor de não ficção tem uma responsabilidade que é quase objetivada pela situação perante as pessoas que existem”, ele avalia. “Temos uma ideia muito boa do que podemos e do que não podemos dizer e conhecemos também o risco que corremos se decidimos transgredir um certo número de coisas. Mas a liberdade é completa, a gente faz o que quer como escritor e assume riscos: se escrevemos um livro e se ele tem um impacto sobre as pessoas de quem fala.”

Uma das pessoas que teve a vida mais afetada por O retalho foi Chloé, a principal cirurgiã que trabalhou — e continua trabalhando até hoje — na reconstrução do rosto de Lançon. “Ela reagiu, foi uma das pessoas mais transformadas por este livro, de maneiras que eu não tinha absolutamente imaginado, previsto ou desejado”, Lançon conta. “[A reação] não foi agressiva e eu não reclamo, mas também não posso me fazer de inocente e me mostrar surpreso pelo fato de que um livro que tanta gente leu possa ter um impacto sobre as pessoas que estão nele. É preciso aceitar.” O sucesso do livro transformou Chloé em uma personagem relativamente famosa, e Lançon avalia que ela precisou aprender a viver com a personagem em que paralelamente se transformou. “Um dia, ela chegou para trabalhar no hospital e a metade dos pacientes tinha o meu livro na mesinha de cabeceira. Não é a Bíblia, hein?”, ele brinca. “Era um ato de reivindicação que queria claramente dizer: ‘Nós queremos nos beneficiar dos tratamentos que foram dados a ele’.” Ele também ficou sabendo que uma paciente internada na mesma ala do hospital batizou o suporte de soro, que levava consigo para caminhadas no corredor, de Philippe. “Esse é um caso extremo e fetichista que pode parecer meio estranho, mas, ao mesmo tempo, se ajudou... As pessoas fazem com o livro o que quiserem. A identificação pode acontecer de uma maneira às vezes perfeitamente boba ou ingênua, mas é muito importante fazer isso, viver um livro é assim.”

E arremata: “Eu com frequência penso em como seria a minha vida se eu não estivesse naquela manhã no Charlie Hebdo, coisa que quase aconteceu. Vivo de maneira muito concreta com essa ideia que, em um certo momento, quase se tornou um projeto literário: imaginar a vida que eu teria se não tivesse ido à reunião de pauta naquele dia. Seria um romance, eu me transformaria em outro personagem, porque essa não seria exatamente a minha vida. É uma coisa em que eu continuo pensando, mas acho que escrever essa história iria me deixar louco”.

 

Um livro que fala de livros

“Alguns livros foram muito importantes [no período de recuperação], alguns por acaso, outros, não. Os três livros principais foram Cartas a Milena, de Kafka, Em busca do tempo perdido, de Proust, e A montanha mágica, de Thomas Mann.

“Eu já li tantas vezes Em busca do tempo perdido que conheço de trás para frente, não preciso ler o livro, sou capaz de entrar em qualquer ponto. É isso que eu queria. Pedi para o meu pai ir ao meu apartamento e trazer este livro, foi a minha escolha.

A montanha mágica também foi minha escolha, mas eu nunca tinha lido, então foi diferente. Eu pensei, depois de alguns dias, que ia passar muito tempo naquele hospital, então pelo menos ia ter tempo de ler A montanha mágica e compartilhar da experiência daquelas pessoas no sanatório em Davos. O exemplar que eu tinha foi presente de uma amiga muito antiga, que tinha me dado talvez mais de dez anos antes. Minha casa está cheia de livros que eu nunca li, eu pedi ao meu pai que me trouxesse A montanha mágica, e não sei como ele achou, mas achou e levou para o hospital. Minha amiga, uma grande leitora, disse que ficou com uma febre altíssima de quarenta graus quando leu este livro— e que isso só aconteceu duas vezes na vida dela, a outra foi com Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Então, pensei: ‘Se este livro causou tanta febre nela, ele vai me ajudar a me recuperar, a ter menos febre’.”

“O terceiro me foi dado por minha amiga e chefe no Libération, mas quando ela me visitou, eu não estava no quarto, então ela escreveu um recado no livro que me levou de presente, Cartas a Milena, de Franz Kafka, e deixou para mim. Este livro foi um acaso e foi muito importante porque eu tinha dificuldade de me concentrar. Concentrar-se nos romances de Kafka não é muito fácil, mas o mesmo não acontece com as cartas, que são curtas. E muitas das cartas estão relacionadas à tuberculose de Kafka, e a maneira como ele encara sua doença é absolutamente assustadora no sentido de que sempre merecemos o que acontece conosco de um jeito ou de outro; ele fala de inferno, do fato de que no fim não podemos reclamar e temos que dar o melhor de nós. Isso me ajudou muito, porque naquele momento ele foi um mestre duro, um amigo duro e, no estado em que eu estava naquele momento, a melhor coisa possível foi ter um amigo duro para esclarecer as coisas.”

 

Reflexões sobre o título

“Quase desde o começo da escrita do livro em francês, estava claro para mim que era Le lambeau, por seu sentido determinante e que era a realidade do que tinha sido vivido: é o nome da operação que fizeram em mim, quer dizer, pegar a fíbula, o perônio, e colocar no lugar da mandíbula. Então, para mim, antes de todas as definições psicológicas de lambeau, eu queria um título claro e conciso que correspondesse à cirurgia, ao ato. De fato, este mesmo título foi escolhido, por exemplo, em alemão, Der Fetzen, e em espanhol, El cogajo [além do português, O retalho, entre outras edições estrangeiras]. É uma palavra bonita, é uma palavra que conta, ao mesmo tempo, pelo que significa e pelo que é. A sonoridade, a presença, a maneira que acolhe seu destino, tudo conta para um escritor em relação a uma palavra. Mas em inglês seria ‘The Flap’, e meu tradutor e americanos com quem conversei disseram que não soa bem, é feio. Naquele momento foi preciso pensar em outro título e me voltou um título não exatamente alternativo, mas uma ideia secundária que também existiu desde o começo que era Perturbação, porque eu considerava que era a história de uma perturbação, ciente de que para mim esta não é uma palavra suave, é violenta. Ela me remete ao livro Perturbação, de Thomas Bernhard [escritor austríaco], que me marcou demais na década de 1980. Portanto, não dava para usar em francês porque era o título de um romance entre os meus preferidos. Por outro lado, o livro de Bernhard foi traduzido de outro jeito em inglês [Gargoyles, ou “gárgulas”], então pensei: Como se traduz perturbação em inglês? Disturbance. Achei que podia fazer essa sugestão, fui eu quem propus ao editor, ciente de que The Flap não ia rolar, e ele aceitou.”

  

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Ana Ban é tradutora. Acompanhou o lançamento da versão em inglês de O RETALHO, em Nova York, em fevereiro de 2020. 

 


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