A singularidade de J. D. Salinger em NOVE HISTÓRIAS
Por
Maria Esther Maciel comenta o livro que redefiniu a arte do conto
Nove histórias não é apenas um dos livros mais emblemáticos da literatura norte-americana do século XX mas também um dos que levaram a arte do conto — aqui compreendida em sua dimensão atemporal e não circunscrita aos limites de um país ou de uma língua — ao seu ponto máximo de excelência.
Publicado originalmente em 1953, dois anos depois do aclamado romance O apanhador no campo de centeio, o volume reúne narrativas escritas a partir do fim dos anos 1940.
O conto que abre a coletânea, “Um dia perfeito para peixes-banana”, já oferece as diretrizes para a leitura do conjunto, por concentrar as principais linhas de força que incidem nas narrativas subsequentes. Sua matéria-prima são os momentos prosaicos (nem por isso banais) que atravessam um dia na vida de Seymour Glass. Diálogos familiares cheios de não ditos, detalhes irrelevantes à primeira vista, mas incisivos como pistas para a interpretação dos acontecimentos, evidenciam a ineficácia de uma leitura superficial do enredo. Este, aliás, importa menos que a sutileza irônica da linguagem e os movimentos ambíguos da narrativa. A isso se soma o engenhoso uso que o autor faz tanto dos sentidos deflagrados pela sonoridade dos nomes dos personagens quanto do falar espontâneo das crianças.
Tais recursos se reinventam nas demais ficções, com acréscimos e variações surpreendentes, que incluem inserções de cartas, relatos e anotações no meio das narrativas, capazes de revelar, nos detalhes, o que se esconde nas dobras do enredo central. Discórdias conjugais, hábitos supérfluos das famílias de classe média em viagens de férias, artifícios enganosos do marketing capitalista e ilusões do ideal americano de existência são postos em questão por um olhar ao mesmo tempo crítico e melancólico. E, como contraponto, a possibilidade da epifania, da luminosa força da imaginação.
O último conto, “Teddy”, em simetria inversa ao primeiro, vem evidenciar esse contraponto ao percorrer as palavras sábias de um menino — um pequeno buda — que, em vez de aderir ao way of life americano para sobreviver ao agora do mundo, opta por outro caminho.
Assim, com uma prosa que se recusa a ser encontrada onde se espera que ela esteja, Salinger reafirma, com Nove histórias, sua singularidade na literatura do século XX e de todos os tempos. Nesse sentido, sua publicação no Brasil pela Todavia, em tradução impecável de Caetano W. Galindo, é para ser celebrada como um dos grandes acontecimentos literários de 2019.
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Maria Esther Maciel é escritora, crítica literária e professora colaboradora de teoria literária da Unicamp. Publicou, entre outros, Literatura e anomalidade (Civilização Brasileira, 2016).