Trecho do livro
Janeiro: Alguém que escreve num caderno alfabético e ordena as emoções, as letras guiam os sentimentos (que sintaxe pode resistir à descoberta da paixão?). Domingo 4: Releio Madame Bovary e estou no meio da cena da feira. O contraste não é fácil demais? Discurso tosco, tosca sedução: as grandes palavras. A mesma sensação desde o começo: muita ênfase no mundo “estúpido” de Charles Bovary, oposto à espiritualidade piegas de Emma. Peço desculpas, porque Flaubert é um mestre extraordinário, o fato de preparar o adultério com Léon e fazê-lo consumar depois com outro homem é notável. Terça-feira 20 de janeiro de 1976: No anfiteatro da Fac
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Janeiro: Alguém que escreve num caderno alfabético e ordena as emoções, as letras guiam os sentimentos (que sintaxe pode resistir à descoberta da paixão?). Domingo 4: Releio Madame Bovary e estou no meio da cena da feira. O contraste não é fácil demais? Discurso tosco, tosca sedução: as grandes palavras. A mesma sensação desde o começo: muita ênfase no mundo “estúpido” de Charles Bovary, oposto à espiritualidade piegas de Emma. Peço desculpas, porque Flaubert é um mestre extraordinário, o fato de preparar o adultério com Léon e fazê-lo consumar depois com outro homem é notável. Terça-feira 20 de janeiro de 1976: No anfiteatro da Faculdade de Direito, em frente ao Panthéon, homens e mulheres que se amontoam e mantêm entre si suaves cumplicidades. Entra Lacan, casaco de pele, paletó xadrez, blusa de médico, charuto apagado, extenso e ziguezagueante, fala num sussurro incompreensível: estranha agressividade. Faz com que desejem sua voz, já que vieram escutá-lo, “quem quiser me ouvir que me leia”, repete duas vezes. Depois apresenta um jovem pulcro (Jacques Aubert), que expõe uma correta leitura de Joyce, enquanto Lacan faz as vezes do seu monitor escrevendo na lousa, com gesto teatral, palavras soltas: “Dublin”, “pai”, “Bloom”. Vimos Barthes: a loucura, disse, está sempre na sintaxe, porque é aí onde o sujeito procura seu lugar. Uma longa espera antes, na escada. Domingo 1º de fevereiro: Em Buenos Aires, de volta em casa, entro sozinho no apartamento da rua Canning, arrumado e limpo: estranha paz. Brincar de homem solitário que volta de uma viagem a Paris. Sábado 14: Passei a semana arrumando minhas estantes. Pacotes e mais pacotes de papéis queimados, acumulados durante anos, nos quais não fiz mais do que escrever inutilmente. Traço a linha. Eu tinha quantos anos? Papéis e mais papéis agora em sacos de plástico, transparentes, práticos para o lixo. Leio as cartas finais de Nietzsche, a destruição da sua mente que, no entanto, não contamina o estilo. Rumores de golpe de Estado, segundo o Rubén, não passa desta semana. Segunda-feira 16: Almoço fruta e leite. Começo a fumar depois das duas da tarde. Quinta-feira 19: Insólito telefonema de Ulyses Petit de Murat para elogiar Nome falso, leitura que parece vir de outro mundo e, no entanto, se opõe à dos que parecem estar mais próximos (Juan Carlos Martini, Enrique Molina, Osvaldo Soriano), que tomam a história sobre Arlt ao pé da letra e acham que é verdade. Sexta-feira 27: Fala-se do golpe militar como inevitável, Lorenzo Miguel apoia Isabel, e os militares, ao que parece, já organizaram um gabinete. Repetem-se as generalizações do golpe de 1955: corrupção, ineficiência etc. O objetivo parece ser desarticular o movimento sindical para dar via livre ao projeto liberal. Sábado 28: As memórias de Sarmiento vão se organizando num eixo sobre o qual eu gostaria de trabalhar: o projeto de ser escritor, as condições de possibilidade. No caso de Sarmiento, encontro um núcleo que chamarei de “arltiano”: obsessão com a legitimidade, com a falta de títulos acadêmicos, 20 leituras excessivas, busca de reconhecimento: por causa dessas faltas ele se torna escritor. Talvez fosse possível partir desses nós para reconstruir um percurso — fazer um nome com a literatura — presente em Sarmiento, mas não só nele. Em Arlt, reler as Águas-fortes: o escritor que vê, o vidente (que vem das ciências ocultas), a forma é: hoje eu estava caminhando pela rua e vi. Ele escreve essas crônicas por dinheiro, e por isso o secretário de redação tem o direito de cortá-las. Você é um gênio, repete, para lhe explicar por que esses fragmentos rasurados não saem. Por seu lado, Mansilla: o início da sua escrita está ligado à sua fuga da prisão depois da tentativa de duelo com José Mármol. Refugia-se em Santa Fe e é contratado pelo governador para descrever aquilo que não viu, sob o nome de quem lhe paga; pressionado e por dinheiro não consegue, a escrita não sai (“de como a fome me fez escritor”). Inversão da sua “facilidade” e investimento da sua fortuna familiar. A partir daí só escreverá sob seu próprio nome e apenas aquilo que viu. Comparar, então, as Causeries de Mansilla e as Águas-fortes de Arlt. Releio Dom Quixote, lembro da primeira leitura do romance, em 1959. A oposição Quixote-Sancho parece se basear no legível, a oposição loucura-razão depende da leitura: dom Quixote diz “tudo isto terias por certo se tivesses lido tantas histórias como eu”, ao que Sancho responde “perdoe-me vossa mercê, pois, como não sei ler nem escrever, como já lhe disse…”.