Trecho do livro
Como é que alguém se transforma em escritor, ou é transformado em escritor? Não é uma vocação, imagine, também não é uma decisão, mais parece uma mania, um hábito, um vício, você deixa de fazer isso e se sente mal, mas ter que fazê-lo é ridículo, e acaba se tornando um modo de viver (como outro qualquer).
A experiência, ele percebera, é uma multiplicação microscópica de pequenos acontecimentos que se repetem e se expandem, sem conexão, dispersos, em fuga. Sua vida, ele compreendera, era dividida em sequências lineares, séries abertas que remontavam ao passado distante: incidentes mínimos, estar soz
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Como é que alguém se transforma em escritor, ou é transformado em escritor? Não é uma vocação, imagine, também não é uma decisão, mais parece uma mania, um hábito, um vício, você deixa de fazer isso e se sente mal, mas ter que fazê-lo é ridículo, e acaba se tornando um modo de viver (como outro qualquer).
A experiência, ele percebera, é uma multiplicação microscópica de pequenos acontecimentos que se repetem e se expandem, sem conexão, dispersos, em fuga. Sua vida, ele compreendera, era dividida em sequências lineares, séries abertas que remontavam ao passado distante: incidentes mínimos, estar sozinho num quarto de hotel, ver seu rosto num instantâneo, entrar num táxi, beijar uma mulher, levantar os olhos da página e dirigi-los à janela, quantas vezes? Esses gestos formavam uma rede fluida, desenhavam um percurso – e desenhou um mapa de círculos e cruzes num guardanapo –, digamos que o percurso da minha vida seria assim, disse. A insistência dos temas, dos lugares, das situações é o que eu quero – falando figuradamente – interpretar. Como um pianista que improvisa, sobre um frágil standard, variações, mudanças de ritmo, harmonias de uma música esquecida, disse, e se ajeitou na cadeira.