“Desde Jorge Luis Borges nunca tinha visto alguém tão inteligente e tão pouco orgulhoso de tudo o que sabia.”
Juan Cruz, El País
Trecho do livro
A vida não se divide em capítulos, disse Emilio Renzi ao barman do El Cervatillo naquela tarde, com os cotovelos apoiados no balcão, em pé diante do espelho e das garrafas de uísque, vodca e tequila que se alinhavam nas prateleiras do bar. Sempre me intrigou o modo irreal mas matemático em que ordenamos os dias, disse. O próprio calendário já é uma prisão insensata sobre a experiência porque impõe uma ordem cronológica a uma duração que flui sem critério algum. O calendário aprisiona os dias, e é provável que essa mania classificatória tenha influenciado a moral dos homens, disse Renzi sorrindo para o barman. Falo por mim, disse, qu [leia mais]
A vida não se divide em capítulos, disse Emilio Renzi ao barman do El Cervatillo naquela tarde, com os cotovelos apoiados no balcão, em pé diante do espelho e das garrafas de uísque, vodca e tequila que se alinhavam nas prateleiras do bar. Sempre me intrigou o modo irreal mas matemático em que ordenamos os dias, disse. O próprio calendário já é uma prisão insensata sobre a experiência porque impõe uma ordem cronológica a uma duração que flui sem critério algum. O calendário aprisiona os dias, e é provável que essa mania classificatória tenha influenciado a moral dos homens, disse Renzi sorrindo para o barman. Falo por mim, disse, que escrevo um diário, e os diários só obedecem à progressão dos dias, meses e anos. Não há outra coisa que possa definir um diário, não é o material autobiográfico, não é a confissão íntima, nem sequer é o registro da vida de quem o escreve que o define; simplesmente, disse Renzi, é a ordenação do escrito pelos dias da semana e os meses do ano. Só isso, disse satisfeito. Você pode escrever qualquer coisa, por exemplo, uma progressão matemática, uma lista da lavanderia ou o relato minucioso de uma conversa num bar com o uruguaio que atende o balcão ou, como no meu caso, uma mistura inesperada de detalhes ou encontros com amigos ou testemunhos de acontecimentos vividos, tudo isso pode ser escrito, mas será um diário apenas e exclusivamente se você anotar o dia, o mês, o ano, ou uma dessas três formas de nos orientarmos na corrente do tempo. Se eu escrever, por exemplo, Quarta-feira 27 de janeiro de 2015 e abaixo dessa legenda escrever um sonho ou uma lembrança, ou imaginar algo que não aconteceu, mas antes de começar a escrever a entrada puser, por exemplo, Quarta-feira 27 ou, mais breve, assinalar Quarta-feira, isso já será um diário, não um romance, não um ensaio, mas pode incluir romances e ensaios desde que você tome o cuidado de antes pôr a data, para se orientar e criar uma serialidade datada, mas depois, olho nisso, disse — e tocou com o dedo indicador da mão esquerda a pálpebra inferior do olho direito —, se você publicar essas anotações conforme o calendário, com seu nome, quer dizer, se garantir que o sujeito que está falando, o sujeito do qual se está falando e o que assina são a mesma pessoa, ou, melhor dizendo, todos têm o mesmo nome, então será um diário pessoal. O nome próprio garante a continuidade e a propriedade do escrito. Embora, como se sabe, desde que Sigmund Freud publicou A interpretação dos sonhos (grande texto autobiográfico, diga-se de passagem), no fim do século XIX, cada um nunca é um, nunca é o mesmo, e como a esta altura não acredito que exista uma unidade concêntrica chamada “o eu”, ou que os muitos modos de ser de um sujeito possam ser sintetizados numa forma pronominal chamada Eu, não compartilho da superstição atual sobre a proliferação de escritas pessoais. Por isso, falar em escritas do Eu é uma ingenuidade, pois não existe o eu a que essa escrita — ou qualquer outra — possa se referir, dizia rindo. O Eu é uma figura oca, o sentido deve ser buscado em outro lugar; num diário, por exemplo, o sentido é a ordenação conforme os dias da semana e o calendário. Por isso, ainda que no meu diário eu vá manter a ordem temporal matemática, também me preocupa outro tipo de cronologia e outro tipo de escala e periodização, e é nisso que estou pensando, mas, claro, desde que o diário seja publicado com o nome verdadeiro do autor e em suas entradas a pessoa que as escreve seja a mesma que as viveu e tenha o mesmo nome, concluiu Renzi. Ao reler estes cadernos eu me divirto e a musa mexicana vai às gargalhadas com as divertidas aventuras de um aspirante a santo, ela me diz. Concordo, é isso mesmo, eu lhe digo, um livro cômico, claro, sempre quis escrever uma comédia, e no fim foram esses anos da minha vida que conseguiram o toque de humor que eu andava procurando, disse Renzi. Por isso, talvez, vou chamá-los “meus anos felizes”, porque enquanto os lia e transcrevia me diverti vendo como a gente é ridículo; sem querer fiz da minha experiência uma sátira da vida em geral e também em particular. Basta você se olhar de longe para que a ironia e o humor transformem suas teimas e deslizes em piada. A vida contada pela mesma pessoa que a vive já é uma piada, ou melhor, disse Renzi ao barman, uma brincadeira mefistofélica.
Eu tenho, por causa da minha deformação como historiador, uma sensibilidade especial para as datas e a progressão ordenada do tempo. A grande incógnita, a pergunta que me acompanha nestas semanas que tenho dedicado a transcrever meus cadernos, a ditar meus diários e passá-los, como se diz, a limpo, é em que momento a vida pessoal se cruzou com a política, ou foi interceptada por ela, por exemplo, nesses sete anos a que me dedico agora, sem cessar, exclusivamente interessado em saber como vivi, entre 1968 e 1975, minha pobre vida de jovem aspirante a, digamos assim, escritor, a ser um escritor, coisa que eu não era em sentido pleno — porque cada um é alguma coisa, chega a ser alguma coisa mais ou menos definida depois de morto —, eu já havia publicado um livro de contos, A invasão, bastante decente, posso dizer agora, sobretudo se comparado com os livros de contos publicados naquele tempo, portanto era só um jovem aspirante a escritor, e agora, ao ler os diários desses sete anos, a pergunta que me surgiu, quase como uma ideia fixa que não me deixa pensar em outra coisa, é o que é pessoal e o que é histórico na vida de um indivíduo qualquer, dizia Renzi naquela tarde ao barman uruguaio do El Cervatillo, enquanto tomava uma taça de vinho no balcão do bar.
Um fato-chave foi uma razia do Exército na tarde de 1972 em que, procurando um jovem casal não identificado, vasculharam o prédio de apartamentos da rua Sarmiento onde eu morava com a Julia, minha mulher na época. Nós também éramos um jovem casal, e o Exército, ou aquela patrulha, que fazia uma “operação pente-fino” — como se dizia no jargão — na área, certamente estava tentando confirmar um dado, uma informação obtida com os métodos de interrogatório típicos das forças de segurança, que são a força aplicada a intimidar e matar cidadãos indefesos. Sabe-se lá quem eram os integrantes daquele jovem casal, o que eles faziam, ao que se dedicavam, decerto eram estudantes de esquerda, garotos de classe média, pois moravam e eram procurados num prédio na esquina das ruas Sarmiento e Montevideo, em pleno centro de Buenos Aires. Não éramos nós, mas morávamos lá.
Tomei conhecimento da operação porque, quando ia chegando em casa, avistei os caminhões do Exército e vi dois soldados que saíam do prédio, então desandei meus passos, como se diz, e liguei para a Julia no escritório da revista Los Libros, onde ela trabalhava à tarde, e a avisei e resolvemos passar aquela noite num hotel. No City Hotel. Tínhamos, disse Renzi ao barman, certo traquejo para mudar de endereço quando a tempestade se anunciava, sabíamos que uma tática das forças repressivas do Exército de ocupação, eu diria agora, era agir rápido, de surpresa, e em seguida se retirar para cercar outro bairro. Se bem que o que estava acontecendo naquele tempo não tem nem comparação com os métodos brutais, criminosos e demoníacos que o Exército argentino, ou melhor, as Forças Armadas usaram poucos anos depois, sob o comando operacional da Junta Militar, como diriam a partir de março de 1976. Essa época era muito mais leve, mas de qualquer forma a Julia e eu sumimos, por assim dizer, durante alguns dias. O Exército patrulhava meio ao acaso — ou baseado em dados não muito precisos — uma área da cidade, para depois cercá-la e revistar casa por casa e ver se pescava algum peixinho perigoso. E assim passamos dois dias naquele hotel perto da praça de Mayo e depois, quando achamos que a tempestade tinha passado, voltamos para casa. Renzi se virou para a porta de entrada e, absorto, comentou com voz cansada “esse calor vai nos matar” e em seguida, como se despertasse, retomou a conversa sem mudar de posição, quer dizer, de perfil para o barman, olhando para a rua Riobamba.
Então, ao chegar, o zelador me disse que tinham voltado, gente do Exército, para perguntar pelo casal de jovens que morava no quarto ou no quinto andar do prédio, e, como morávamos no quarto, juntamos algumas coisas — meus cadernos, meus papéis, a máquina de escrever — e fomos embora para não voltar. Aí eu vejo uma interseção entre a história e a vida pessoal, porque essa retirada produziu em mim diversos efeitos tão decisivos quanto a mudança para Mar del Plata quando meu pai foi afetado pela política e, a contragosto, tivemos que abandonar Adrogué, o lugar onde eu nasci.