Trecho do livro
23 DE MARÇO DE 2020
Fui dormir só de calcinha e acordei de madrugada com muito frio, um frio surreal. Me enfiei em dois casacos, uma calça e uma meia. Ainda assim, mesmo com lençol e cobertor, eu tremia. De manhã, Victor viu meu estado e pegou o termômetro. Trinta e oito graus. Medimos minha temperatura algumas vezes mais, e cheguei a quase trinta e nove. A febre é o arroz de festa das doenças, aparece em quantas puder. Hoje, contudo, está todo mundo agindo como se só existisse a Covid-19. Como no áudio, provavelmente fake, da senhora aliviada ao receber a notícia de que o marido morrera de tuberculose. Achou que era Covid.
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23 DE MARÇO DE 2020
Fui dormir só de calcinha e acordei de madrugada com muito frio, um frio surreal. Me enfiei em dois casacos, uma calça e uma meia. Ainda assim, mesmo com lençol e cobertor, eu tremia. De manhã, Victor viu meu estado e pegou o termômetro. Trinta e oito graus. Medimos minha temperatura algumas vezes mais, e cheguei a quase trinta e nove. A febre é o arroz de festa das doenças, aparece em quantas puder. Hoje, contudo, está todo mundo agindo como se só existisse a Covid-19. Como no áudio, provavelmente fake, da senhora aliviada ao receber a notícia de que o marido morrera de tuberculose. Achou que era Covid.
Telefonei para minha obstetra. Julia me orientou a ir monitorando a febre ao longo do dia. Deveria ir ao hospital apenas se persistisse, e também se tivesse dificuldade para respirar, dor de garganta, perda de paladar e olfato, enfim, se eu completasse uma cartela no bingo do coronavírus. Ela pediu que eu usasse máscara para amamentar e evitasse encostar na Violeta até ter certeza do que tinha de errado comigo. Chorei assim que desliguei.
Às vezes a gente se sente na obrigação de justificar por que quer ter filhos ou por que não os quer, e no primeiro caso, que é o meu, um clichê é dizer: não quero morrer sozinha. Um casamento pode acabar em divórcio, aliás, cada vez mais é assim que é. Mesmo se um casal continua junto, suas partes nunca serão felizes para sempre porque, eventualmente, um dos dois morre, e o outro segue vivo por alguns ou muitos anos. Filhos são a melhor garantia para escapar a uma morte solitária. Exceto em tragédias, e um pai enterrar seu filho é sempre uma, a ordem natural é que eles sobrevivam a nós e zelem por nossa velhice, em gratidão à longa temporada em que limpamos suas barras e bundas.