Trecho do livro
Quando soube do ocorrido à filha, diante da lentidão da justiça e antes de o agressor sumir de vez, prometeu a ela que o mataria, caso tivesse uma doença diagnosticada: descobriu a doença quase um ano depois, enquanto o inquérito ainda se arrastava, e não foi mesmo que uma condenação se antecipou a outra, ele pensou ao receber a filha e reiterar sua promessa, ambos sentados na sala diante da tigela de cozido que nada tinha a ver com barbárie ou tristeza, e agora só lhe restava correr para que seu tempo não expirasse feito suas palavras, uma promessa subindo junto da nuvem suspirada pelo cozido, engolidas pelo foco de luz da luminári
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Quando soube do ocorrido à filha, diante da lentidão da justiça e antes de o agressor sumir de vez, prometeu a ela que o mataria, caso tivesse uma doença diagnosticada: descobriu a doença quase um ano depois, enquanto o inquérito ainda se arrastava, e não foi mesmo que uma condenação se antecipou a outra, ele pensou ao receber a filha e reiterar sua promessa, ambos sentados na sala diante da tigela de cozido que nada tinha a ver com barbárie ou tristeza, e agora só lhe restava correr para que seu tempo não expirasse feito suas palavras, uma promessa subindo junto da nuvem suspirada pelo cozido, engolidas pelo foco de luz da luminária acima da mesa de jantar. Na tarde em que foi informado da natureza da doença, saiu da clínica com os exames num envelope, sentou no boteco da esquina e pediu uísque. A chuva veio e ele ficou, como de hábito quando bebia, girando a pedra de gelo no copo com o indicador em sentido anti-horário. Ao fazer isso costumava brincar com a filha ou com quem estivesse por perto, dizendo que era para o tempo não passar. Naquela ocasião contava que o tempo retrocedesse, na verdade, voltando para antes de a doença aparecer e do acontecido à filha. O aguaceiro engrossou e cobriu a calçada, arrastando sacos de lixo que entupiram sarjetas e bueiros, ilhando-o no boteco por tempo suficiente para a dose além da conta. Com a enxurrada, refluíram ondas que formaram um torvelinho, em cujo centro volteava um chinelo tipo ráider e sobre o chinelo um rato encharcado, porém vivo; o aguaceiro aumentou e ali ficou, ali ficaram os dois se encarando, ele em seu posto no balcão de frente para a rua, o rato à deriva no chinelo como um comandante que se recusasse a abandonar o barco: o rato e ele, ambos aprisionados ao torvelinho do presente.