Trecho do livro
Estou raptando uma criança. Tento afastar esse pensamento, mas ele persiste enquanto descemos pelo elevador, cumprimentamos o Chico, saímos pelo portão. São coisas que fazemos todos os dias, descer, cumprimentar o Chico, sair pelo portão, andar pisando só nas pedras pretas ou nas brancas da calçada, mas hoje é diferente mesmo que eu não esteja fazendo nada diferente, porque tenho a sensação de que o exército branco olha pra mim. Foi coisa da dona Fernanda, inventar esse nome, exército branco. E até que ela está certa, somos mesmo um exército, ainda mais a essa hora da manhã, quando todas vêm pra praça com seus uniformes brancos carr
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Estou raptando uma criança. Tento afastar esse pensamento, mas ele persiste enquanto descemos pelo elevador, cumprimentamos o Chico, saímos pelo portão. São coisas que fazemos todos os dias, descer, cumprimentar o Chico, sair pelo portão, andar pisando só nas pedras pretas ou nas brancas da calçada, mas hoje é diferente mesmo que eu não esteja fazendo nada diferente, porque tenho a sensação de que o exército branco olha pra mim. Foi coisa da dona Fernanda, inventar esse nome, exército branco. E até que ela está certa, somos mesmo um exército, ainda mais a essa hora da manhã, quando todas vêm pra praça com seus uniformes brancos carregando bebês ou crianças, e então batem papo empurrando carrinhos e balanços com bebês ou crianças. Um mundo que até ontem era o meu mundo mas que agora parece me olhar com desconfiança. Será tudo loucura da minha cabeça? Diga, minha Nossa Senhora, é tudo loucura? Não sei, mas por via das dúvidas apresso o passo, vamos, Corinha, outra hora você brinca de pisar só nas pedras brancas. E não cruzo a praça como faria normalmente, desvio pela calçada lateral. Só que mesmo ali o exército me bisolha, encontro com a babá do prédio vizinho, tenho a impressão de que ela olha pra minha bolsa, na verdade uma mala, tão maior do que a bolsinha que levo todos os dias, uma sacola enorme bem presa debaixo do braço que aperto pra ver se diminui. Não dou conversa e seguimos andando, até que a Cora diz: Maju, tua mão tá estranha, e talvez pra se livrar do meu suor, solta meus dedos. Quando vejo ela está agachada catando do chão uma camélia murcha. Nunca vi criança pra gostar tanto de flor. Eu acho bom, uma criança que gosta tanto de flor. Por isso não costumo apressar que nem tanta babá por aí faz com as crianças, deixo a Cora cheirar um jardim inteiro se tiver vontade, e ainda carrego aquela petalarada no meu bolso pra ela. Uma vez esqueci de tirar da calça e botei na máquina de lavar e foi bonito de ver, as flores todas girando e centrifugando lá dentro, mas hoje não dá, Picochuca, hoje não dá, e nem passo lenço umedecido na mão dela como faria normalmente pra tirar os micróbios, só puxo aqueles dedinhos junto comigo, sentindo saudade do vazio de Mandaguaçu, daquele descampadão de Mandaguaçu, porque aqui em São Paulo não tem um minuto que não tenha alguém olhando pra você. Tipo esses taxistas, se ocupando com a vida alheia. Eu conheço todos, só pegamos táxi com eles, gente de confiança do seu Cacá e da dona Fernanda. E justamente porque são gente de confiança deles, desvio. Desvio e subimos pela avenida Angélica. Pegamos o ônibus. A Cora estranha, não vamos de táxi, Maju?, mas também adora a novidade, é a primeira vez que pega um ônibus de linha, pede pra sentar no banco da frente, achata o nariz contra o vidro.
A rodoviária não é tão longe e em meia hora chegamos. Olho em volta pra ver se não tem nenhum conhecido por perto, claro que não tem nenhum conhecido por perto, mesmo assim eu acelero. Enfio a Cora no elevador, a coitada espremida no meio da bagajarada toda, nunca vi gente pra carregar tanta sacola, os plásticos estalando e indicando até pra um cego que o recinto está cheio de pobre. Ainda bem que as portas logo se abrem, eu saio com a minha Picochuca, caminhamos por uma plataforma de onde vemos várias outras plataformas, aquele montão de gente se movimentando, escadas rolantes subindo e descendo, placas com informações, guichês com filas, lojas com ofertas. A Cora para e fica assim por um tempo, eu a puxo, mas ela não vem. Me abaixo pra ver o que está acontecendo. Maju, por que meus olhos são tão pequenos e eu vejo um mundo tão grande?