Trecho do livro
Pela primeira vez em cinco séculos repletos de surtos epidêmicos decorrentes de vírus, bactérias e protozoários exógenos levados aos povos indígenas, nós, os invasores de seus territórios originários, experimentamos simultaneamente os mesmos sintomas, desespero e fragilidade diante de uma doença desconhecida, para a qual não temos anticorpos ou remédios. Nesse sentido, “somos todos indígenas”, como disse recentemente o antropólogo Bruce Albert, pois sentimos na pele o sofrimento que impusemos a eles.
O projeto de extermínio das culturas indígenas, proposto e executado pela equipe que rege o Brasil desde janeiro de 2019, volta-se ag
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Pela primeira vez em cinco séculos repletos de surtos epidêmicos decorrentes de vírus, bactérias e protozoários exógenos levados aos povos indígenas, nós, os invasores de seus territórios originários, experimentamos simultaneamente os mesmos sintomas, desespero e fragilidade diante de uma doença desconhecida, para a qual não temos anticorpos ou remédios. Nesse sentido, “somos todos indígenas”, como disse recentemente o antropólogo Bruce Albert, pois sentimos na pele o sofrimento que impusemos a eles.
O projeto de extermínio das culturas indígenas, proposto e executado pela equipe que rege o Brasil desde janeiro de 2019, volta-se agora igualmente contra nós, que vemos, com olhos arregalados, e trancados em nossas casas, as nossas vidas em risco, nas mãos de governantes incompetentes.
As palavras do xamã e líder yanomami Davi Kopenawa, proferidas muito antes da pandemia, à luz de sua preocupação com a destruição ambiental, tentam explicar aos ignorantes que o desastre por vir afetará igualmente a todos:
Se o céu escurecer e a terra ficar toda alagada, eles [os brancos] não vão mais poder ficar empoleirados em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões! Se Omoari, o ser do tempo seco se instalar de vez perto deles, eles só terão fios de água para beber e assim vão morrer de sede. É bem possível que isso aconteça mesmo.1
Mais atônitos ficamos ao ver que, em meio ao caos da pandemia, o projeto de destruição da Amazônia e seus povos autóctones se acelera, com os convites à grilagem, mineração ilegal e invasões de todos os tipos, acompanhados do desmonte dos órgãos de fiscalização ambientais e indigenistas, produzindo mais contaminação e doenças. O novo vírus, ao invés de obstáculo, tornou-se um trampolim para as ações criminosas, invisibilizando-as em meio às notícias sobre a doença. Sabe-se que, sem a garantia de integridade de seus territórios, os indígenas não podem sobreviver, com ou sem vírus. O agravante agora é que, com as suas terras invadidas, não têm mais lugares seguros para fugir ao buscar proteção contra a doença, pois ela lhes é trazida diretamente pelos invasores.