Trecho do livro
Quero ir-me embora, subir a escada às cambalhotas, se preciso for. Do grupo reunido, espero tudo que me falta, sobretudo a organização de minhas forças, às quais não basta essa possibilidade única e extrema que constitui a do solteiro na rua. Este já se contenta em resistir com seu físico decerto miserável, mas firme, em preservar suas duas ou três refeições, em evitar a influência de outras pessoas, em suma, em reter tudo que pode do mundo que se desfaz. Aquilo que perde, ele busca recuperar com violência, mesmo que então se apresente modificado, debilitado, semelhante apenas em aparência à propriedade perdida (como ocorre na maior
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Quero ir-me embora, subir a escada às cambalhotas, se preciso for. Do grupo reunido, espero tudo que me falta, sobretudo a organização de minhas forças, às quais não basta essa possibilidade única e extrema que constitui a do solteiro na rua. Este já se contenta em resistir com seu físico decerto miserável, mas firme, em preservar suas duas ou três refeições, em evitar a influência de outras pessoas, em suma, em reter tudo que pode do mundo que se desfaz. Aquilo que perde, ele busca recuperar com violência, mesmo que então se apresente modificado, debilitado, semelhante apenas em aparência à propriedade perdida (como ocorre na maioria dos casos). Sua essência é, portanto, suicida, só tem dentes para a própria carne, e carne para os próprios dentes. Sim, porque sem um centro, sem uma profissão, um amor, uma família, uma renda, ou seja, sem, de um modo geral, se sustentar perante o mundo — numa tentativa, é claro —, sem, portanto, de certo modo assombrá-lo com grande quantidade de posses, não há como se proteger de perdas de pronto destrutivas. Esse solteiro, com suas roupas delgadas, sua arte de rezar, suas pernas perseverantes, sua temida moradia de aluguel, sua essência despedaçada e ora, depois de um longo tempo, novamente invocada, segura isso tudo com os dois braços, e toda vez que apanha uma ninharia qualquer, invariavelmente perde duas das suas. Aí está, é claro, a verdade, que em nenhuma outra parte se mostra tão pura. Sim, porque quem se apresenta de fato como cidadão consumado, ou seja, quem viaja num navio tendo espuma à frente e deixando um rastro de água atrás de si, produzindo, portanto, grande efeito à sua volta — bem ao contrário daquele sobre um par de tábuas em meio às ondas, que ademais se chocam e se empurram para baixo —, esse senhor e cidadão corre um perigo que não é pequeno. E isso porque ele e suas posses não são uma coisa só, e sim duas, e quem destroça essa ligação o destroça juntamente com ela. Nesse aspecto, nós e nossos conhecidos somos irreconhecíveis, porque estamos bem escondidos; eu, por exemplo, me oculto hoje sob minha profissão, sob meus sofrimentos imaginados ou reais, sob minhas inclinações literárias etc. Mas eu, justamente eu, sinto o fundo de meu ser com frequência e força demasiadas para poder me dar por medianamente satisfeito. E basta que eu o sinta por quinze minutos ininterruptos para que já o veneno do mundo me entre pela boca como a água que flui para dentro daquele que se afoga.