Trecho do livro
Quando terminei de pendurar as cortinas nas janelas, deitei-me na cama; foi quando, na colina do outro lado, um cão começou a latir sem parar. Já passava da meia-noite e eu não conseguia dormir, apesar de exausta, por ter passado o dia inteiro arrumando a casa e fazendo uma faxina pesada: espanei a mobília e esfreguei o chão, lavei outra vez os lençóis e as toalhas e a maioria dos utensílios da cozinha, embora, a princípio, a casa devesse estar limpa antes de eu começar minha limpeza, pois o proprietário me garantiu que tinha chamado uma senhora só para cuidar da faxina. Aluguei esta casa há alguns dias, assim que assumi meu novo em
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Quando terminei de pendurar as cortinas nas janelas, deitei-me na cama; foi quando, na colina do outro lado, um cão começou a latir sem parar. Já passava da meia-noite e eu não conseguia dormir, apesar de exausta, por ter passado o dia inteiro arrumando a casa e fazendo uma faxina pesada: espanei a mobília e esfreguei o chão, lavei outra vez os lençóis e as toalhas e a maioria dos utensílios da cozinha, embora, a princípio, a casa devesse estar limpa antes de eu começar minha limpeza, pois o proprietário me garantiu que tinha chamado uma senhora só para cuidar da faxina. Aluguei esta casa há alguns dias, assim que assumi meu novo emprego. Em termos gerais, a casa é boa, e os colegas, lá, são afáveis. No entanto, tudo isso não aliviou a ansiedade e o pânico que os latidos persistentes daquele cão despertaram em mim. De qualquer maneira, quando eu me levantar na manhã seguinte, a sensação será de satisfação pela limpeza da casa e, talvez, pelas cortinas já instaladas nas janelas. Posicionei minha mesa de vidro bem perto da janela maior, onde me sentarei todas as manhãs para tomar café antes de ir para o novo trabalho, e de onde observarei os vizinhos passando com seus três filhos e me cumprimentando. Isso dará a impressão de que eu tenho uma boa vida, com um quintal, longe das vistas, pois os limites impostos aqui entre as coisas são muitos, e é importante observá-los e se mover de acordo com eles, só assim o sujeito pode evitar dolorosas consequências, além de dar uma certa impressão de tranquilidade, apesar de tudo. Em todo caso, aqueles que realmente são capazes de se mover dentro dos limites, sem transgredi-los, são uma minoria, da qual com certeza eu não faço parte. Pois assim que vejo algum limite, me apresso para alcançá-lo, ou até ultrapassá-lo, nem que seja por um pequeno passo, sem ser notada. Nenhum desses dois comportamentos, no meu caso, é ato consciente, nem é um desejo manifesto de me rebelar contra os limites; é uma tolice, nada mais. Assim que transgrido qualquer limite, deslizo para um abismo de angústia. A questão, simplesmente, beira a imperícia. E desde que tive ciência da minha incapacidade consumada de me mover de acordo com os limites, resolvi, finalmente, permanecer dentro dos limites da minha casa, tanto quanto possível. Agora, uma vez que a casa tem muitas janelas, e, portanto, não custaria nada aos vizinhos e seus três filhos me verem transgredindo os limites, mesmo dentro da minha casa, instalei cortinas, muito embora soubesse que, algumas vezes, me esquecerei de fechá-las. No entanto, como estarei sempre sozinha em casa, ficarei sentada à minha mesa, e será apenas isso que o mundo exterior verá de mim, a ponto de, se eu deixar, por alguns dias, de fazê-lo, o filho do meio dos vizinhos me dizer que sente falta de me ver todo dia sentada à minha mesa “trabalhando”. Pois é, será o pretexto usado por mim para com os outros, essas longas manhãs sentada, quando estou “trabalhando”, e em que geralmente “trabalho” antes de ir ao novo trabalho, que para mim continuará novo até o final, pois não tenho ideia em que momento ele deixará de ser meu trabalho novo para ser apenas meu trabalho. Também vou ficar trabalhando lá até tarde da noite, até depois da capacidade do vigia da noite me acompanhar. E isso porque, de modo geral, vou chegar ao escritório e começar o trabalho mais tarde, pois o cão na colina do outro lado da rua me acorda no meio da noite e eu não consigo depois pegar no sono até o amanhecer. Assim, acordarei tarde e chegarei ao meu novo trabalho tarde. E quando nada disso acontecer, vou ficar em casa até as últimas horas da manhã, sentada na minha mesa, “trabalhando”; sim, mas em quê?