Um personagem no divã
O psicanalista Luiz Meyer comenta O IMPOSTOR, novo romance de Edgard Telles Ribeiro; leia
Conheço bem a obra de Edgard Telles Ribeiro, cujos livros publicados cheguei mais de uma vez a ler, até em manuscrito. E tenho por essa obra, que em sua época mereceu elogios de Antonio Candido, Wilson Martins e Antonio Houaiss, entre tantos outros no Brasil e no exterior, um grande apreço. Ressalto, entre muitos, O punho e a renda, romance ganhador do prêmio Pen Clube, no qual denuncia as práticas nocivas do Itamaraty associadas à Operação Condor nos anos de repressão. E é ao abrigo dessas palavras que me atrevo a analisar, não propriamente (ou não apenas) seu último livro, mas o personagem que Edgard coloca em cena.
O impostor é construído ao modo de um labirinto de espelhos formado por sonhos, lembranças, fantasias que impulsionam o leitor (e o narrador) a percorrê-lo para descobrir que, ao fim do itinerário, ele vai se reencontrar na porta de entrada. As coisas são e não são simultaneamente, segundo um modo vertiginoso que contrasta com a narrativa serena e reflexiva. Menos do que um da capo al fine, trata-se de um eterno retorno.
Mas qual é a questão que leva o personagem a entrar no labirinto? Qual é o sentido da memória que impulsiona o narrador a viajar ao interior de si mesmo? Ele é casado com uma mulher que tem “memória prodigiosa”. Já a dele, não tem nada de instrumental: é evocativa e invasiva. Diz-nos que desapareceu “em algum lugar, do qual não consigo me recordar”. Entretanto: ele se lembra que desapareceu; e que isto aconteceu em algum lugar. Acabará por nos confessar o moto desse desaparecimento, desse mergulho nas trevas: sair delas “acompanhado desse modesto volume, leve e arredondado, mas estranho e obsoleto, como se representante legítimo fosse da bagagem de uma vida inteira”.
Fora, então, em busca da chapeleira; visitara seu Hades privado para se reapropriar de algo que... perdera (como se alguma vez a tivesse possuído). Precisava recuperá-la pois sua perda lhe provocava um sentimento de total incompletude. Ele se justifica afirmando que “encontramos no passado amparo para o presente”. Mas qual é a leitura que faz do presente, que o força a procurar este amparo? Obrigando-se a viajar, ele vai se dando conta que a realidade interna é tão consistente (e impositiva) quanto a externa. No sonho, quando com tranquilidade acaricia o braço cuja mão fora amputada, insiste em dizer que aquilo era algo que não teria a ver com sua pessoa e sim com seu personagem.
O sonho, claro, pretende naturalizar a castração, mas a busca da chapeleira o trai e mostra que há hipocrisia na sua afetação. Na verdade, deseja “estar só, nessa invasão do passado alheio”, naquele conteúdo que se esconde e se abriga no interior do redondo objeto; está aí o tradutor que quer se apropriar da “obra-prima” alheia e fazer dela “algo [seu] ainda maior”. Bem que gostaria de poder tratar a história como se fosse simplesmente História (a modo de sua mulher, que de tudo se lembra), mas a história (sua, interna) aparece pelas brechas, pelos escapes. Tanto que ao fim e ao cabo vai refazer o itinerário, retornar à porta do labirinto “tendo por toda bagagem a velha chapeleira de minha mãe”. Trata-se evidentemente de uma ilusão que o leva compulsivamente a repetir sua jornada.
No início do livro – ou da viagem –, o narrador contemplando a paisagem, em Nápoles, diz que o mar está encapelado. E se interroga: “de onde poderia ter surgido esta palavra, com a qual não me deparo há anos?” Aflora aí, então, o tradutor: “La mer houleuse, em francês... Choppy waters, talvez em inglês...”
Há aqui uma associação que nosso tradutor se recusa a fazer (mas que o autor, bem a sua maneira, deixa no texto para quem souber descobrir): encapelado remete a cappello, que por sua vez remete a cappelliera. Na Itália, onde se encontra o personagem, é ela – a chapeleira – com seu interior misterioso, tórrido, revoltoso, e continuamente interditado, que o imanta. Diante dela será sempre um estrangeiro.
A não ser, é claro, que o impostor afirme possuí-la.
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Luiz Meyer é psicanalista.