Um perfil de Janet Malcolm

Por Michelle Dean

Trecho retirado do livro AFIADAS: AS MULHERES QUE FIZERAM DA OPINIÃO UMA ARTE, de Michelle Dean, publicado pela Todavia em 2018.

 

Embora a carreira de Janet Malcolm tenha sido tão ligada à New Yorker quanto a de Renata Adler, ela era tranquila enquanto Adler era impetuosa, uma flor tardia enquanto Adler fora um prodígio. Como Hannah Arendt, Malcolm teve de aguardar até os quarenta anos para publicar algo sério. E seu nome só iria se tornar realmente conhecido depois do perfil de 1983 de um homem do qual quase ninguém havia ouvido falar: um especialista em sânscrito que se tornara psicanalista chamado Jeffrey Moussaieff Masson e que fora demitido havia pouco tempo da direção dos Arquivos Sigmund Freud. Masson tinha completado quarenta anos, ostentava uma cabeleira avantajada e uma saudável dose de amor-próprio quando Malcolm o entrevistou. Na primeira vez em que se encontraram, ele lhe disse: 

Quase todos no mundo da análise teriam feito de tudo para se livrar de mim. Eles me invejavam, mas acredito que também sentiram, francamente, que eu era um erro, um incômodo, um potencial perigo para a psicanálise — um perigo realmente crítico. Achavam que eu poderia, sozinho, pôr todo o negócio abaixo — vamos falar sério, há muito dinheiro em jogo nesse negócio. E tinham razão de ter tanto medo, por- que o que eu estava descobrindo era uma bomba. 1

Malcolm estava interessada no confronto que Masson havia detonado com essa bomba, uma discussão acerca da “tese da sedução”, sobre a natureza do relacionamento entre pais e filhos, que fora definido inicialmente como de atração sexual, mas que depois Freud rejeitou e reviu. Ao seguir em frente no debate, Malcolm se viu diante de um homem que parecia não ver limites no autoelogio.

Ela tende a expor as coisas a partir de inferências, mais do que por meio de declarações diretas. Embora tenha levantado pontos negativos sobre Masson, nunca o insultou diretamente. Apenas expunha suas declarações, como a citada acima, que o faziam parecer um louco. Ela deixou que ele explicasse, por exemplo, que se voltara para a psicanálise para curar a si mesmo de uma “promiscuidade absoluta”. Masson lhe contou que já tinha ido para a cama com mil mulheres quando ainda cursava a universidade, o que foi incluído no texto. Para abrandar o relato sobre as atividades de Masson, Malcolm citou uma carta escrita por Freud no século XIX sobre outra pessoa: “Tudo o que ele disse e pensou possuía uma plasticidade, um fervor e um sentido de importância que apenas escondiam a ausência de uma substância mais profunda”. 2

Isso tudo era importante porque Malcolm estava investigando as circunstâncias da demissão de Masson. Se ele era instável, pomposo e egoísta, isso era relevante. Mas Masson também era mais uma coisa: litigioso. Acabaria, mais adiante, por entrar com uma ação contra Malcolm. O processo se arrastou por anos e acabou na Suprema Corte, com Masson afirmando que ela o citara equivocadamente. Depois de anos, foi concluído que ela não o fizera.

O modo indireto e sutil, porém devastador, de Janet Malcolm estava relacionado à sua história e à sua personalidade. Nascida Jana Wienovera, em Praga, Tchecoslováquia, em 1934, ela fora criada para ser uma pessoa sempre gentil e obediente. A família deixou o país quando a guerra começou e se estabeleceu no Brooklin, onde Janet e sua irmã, Marie, aprenderam inglês. Não foi um processo simples. Ela se lembrava da “professora do jardim de infância dizendo ‘Tchau, crianças’ no fim do dia e da inveja que sentia da menina que eu achava que se chamava Crianças. Meu desejo secreto era de que um dia a professora dissesse: ‘Tchau, Janet’”. 3

O pai era psiquiatra (o que sem dúvida pesou no interesse que Malcolm viria a ter pelo assunto) e a mãe, advogada. Ambos conseguiram encontrar trabalho nos Estados Unidos. Ele mudou o nome da família para Winn, bem mais fácil para os americanos pronunciarem. Depois que dominou o inglês, Janet se tornou uma boa aluna e entrou na Universidade de Michigan. Não nutria grandes pretensões. Como muitas moças dos anos 1950, fora educada para agradar aos homens, casar e constituir família. “Durante meus quatro anos de faculdade, não tive uma única professora”, contou à Paris Review. “Não havia nenhuma ali, até onde sei.” Nesse aspecto, Malcolm às vezes lembra uma personagem de Alice Munro: inteligente, estudiosa, mas não muito ambiciosa, encaminhando-se para o casamento porque era o que se esperava dela.

Sua aproximação da carreira que abraçaria se deu lentamente. Ela não surgiu com uma voz já pronta, como Adler ou Parker. Na faculdade, conheceu um jovem chamado Donald Malcolm, que tinha como mentor Kenneth Tynan, então crítico de teatro da New Republic. O talento de Donald era amplamente reconhecido, e ele vinha sendo tratado como um gênio; enquanto isso, ela era uma jovem encantadora cujas tentativas de se tornar escritora eram repetidas vezes frustradas por seu professor de escrita criativa. Quando Donald Malcolm se formou e começou a trabalhar para a New Republic, Janet Winn o seguiu e começou a escrever para a revista. O primeiro texto que publicou, em 1956, era uma espécie de paródia de uma resenha de filme, escrita no tom de uma adolescente excitada:

Fui ver Ama-­me com ternura na noite passada e gostei enormemente. Elvis Presley não é nada obsceno nem lascivo; é apenas diferente. Com certeza se destaca de todos os demais na cena — ela se desenvolve nos tempos da Guerra Civil, quando ainda não existia o rock and roll —, e não só por sua forma de cantar e sua virilidade, mas também por sua atuação. 4

Não há como levar esse texto a sério; ele se encerra com um desejo de que Marilyn Monroe filme Os irmãos Karamázov com Elvis como protagonista, porque seria “muito legal”. O humor pode se perder um pouco para o leitor moderno, pois paródias tendem a não envelhecer bem. Mas alguma coisa do olhar sarcástico da jovem Janet Winn deve ter impressionado, pois, seis meses depois, ela começou a escrever resenhas mais sérias para a New Republic, ainda que de forma intermitente. Ela não se mostrava sempre disposta a gostar daquilo que Hollywood oferecia. Atacou o Santa Joana de Otto Preminger por ter diluído a complexidade moral que George Bernard Shaw havia atribuído em seu texto original à história de Joana d’Arc. Tampouco lhe agradou A embriaguez do sucesso, de Alexander Mackendrick, achando-o óbvio demais. E chamou mais ainda a atenção dos leitores ao expor a reação que tivera diante de O nascimento de uma nação, que tinha voltado aos cinemas pouco antes. Ela achou o filme não só racista, mas focado em estabelecer uma divisão rígida demais entre o bem e o mal:

Do lado de fora da sala, a poucas quadras dali, uma lei de direitos civis, ainda que não muito boa, estava sendo aprovada; e a algumas quadras na outra direção, exibia-se o filme I Was a Teenage Werewolf; não consegui evitar me sentir feliz e segura de que, em termos de cinema ou não, tínhamos avançado muito. 5

Os leitores reagiram energicamente a suas críticas enérgicas. Um deles escreveu a respeito. Dizia que a srta. Winn tinha grande conhecimento e emitia ótimas avaliações, mas acrescentava: “É difícil falar sobre isso, porque a srta. Winn está decididamente na companhia dos anjos e suas avaliações chegam a nós vestidas com a armadura de Deus. Seus padrões parecem tão altos”.6 Outro leitor, autodenominado “estudioso de filmes”, escreveu para corrigir a srta. Winn. Suas apreensões em relação a ela eram mais abrangentes e foram expostas com a abundância de referências que as pessoas empoladas costumam tomar, equivocadamente, como sinal de inteligência. Ele queria informar à srta. Winn que “as maiores autoridades de todos os lugares teceram os mais altos elogios à obra de Griffith”.7 Ele observava que Lênin também havia gostado do filme e a instava a demonstrar mais “caridade” em seus julgamentos de filmes antigos. A resposta que ela deu foi muito simples: 

O sr. Kaufman é um “estudioso de filmes”. Eu não. Como poderíamos estar de acordo?

Naquele momento, Malcolm começava a deslocar seu talento crítico para os livros e o teatro. Ela fez uma resenha de uma coletânea de cartas de D. H. Lawrence, e nada atraiu tanto sua verve crítica quanto a introdução do livro, escrita por ninguém menos que Diana Trilling, ex-colega de McCarthy e Arendt e a principal crítica da Nation naquele momento. Malcolm ridicularizou o egocentrismo de Trilling, acusando-a de uma “chatice terrível”,8 comentando que havia “envelhecido mal” e dizendo que a autora “não tinha um intelecto de verdade” — pontuando, ainda, que, em um livro de crítica literária, não havia nenhuma importância saber se a esposa de um escritor era ou não má pessoa.

Essas resenhas, embora indignas de nota em si mesmas, fortaleceram a autoconfiança da jovem escritora. Paralelamente às cartas sem real valor, ela começava a receber elogios — incluindo o de certo Norman Mailer, cuja participação em um programa de televisão ao lado de Truman Capote e de Dorothy Parker havia sido registrada por Malcolm na revista. Mailer achava que ela não o citara corretamente a respeito de sua discussão com Capote. Ao mesmo tempo, parecia escrever seu comentário num tom de flerte:

Cabe acrescentar que o relato da srta. Winn foi maravilhosamente bem escrito, sofrendo apenas de um equívoco insignificante que é o fato de ter colocado na minha boca palavras que jamais foram ditas por mim.9

Naquele período, ela vivia com Donald Malcolm, com quem se casara no verão de 1959. Donald conseguira um trabalho na New Yorker em 1957, e Janet então voltara ao Brooklin para morar com ele. Ao longo de sete anos, ela não publicou uma única palavra, optando por cuidar da única filha do casal, Anne Olivia.

Quando questionada sobre o começo de sua carreira, Janet Malcolm costuma dizer que se tornou escritora na New Yorker. Ela lera uma quantidade impressionante de livros para a filha pequena, e, ao final, Shawn, que ela conhecia por intermédio de seu marido, sugeriu que escrevesse quais eram seus preferidos para a edição de dezembro de 1966 da New Yorker. Malcolm o fez com uma energia que superou as expectativas dele. Entregou-lhe um ensaio com 10 mil palavras resumindo e analisando seus livros infantis prediletos. O texto começa bem mais pesado do que o tom jocoso de suas colaborações da juventude para a New Republic:

 Nossas crianças são o reflexo de uma crença e um campo de testes para a filosofia. Se as educamos para que sejam felizes e não ligamos muito para o comportamento delas, evidentemente acreditamos na bondade essencial dos homens e nas infinitas possibilidades de felicidade que a vida oferece.10

Na esteira desse artigo, Shawn lhe pediu para repetir a fórmula em 1967 e 1968. O texto de 1967 foi tão denso quanto o de 1966, mas, em 1968, algo acabou introduzindo Malcolm no reino da polêmica. No meio do artigo, ela se envolve numa discussão com um psiquiatra que insiste em dizer que a realidade deveria ser apresentada de forma “menos monstruosa” para as crianças.

Não sei como o dr. Lasagna propõe que se transforme a realidade em algo menos monstruoso, nem tenho certeza de que a realidade seja mais monstruosa do que era antes. Há mais conhecimento e mais preocupações com os problemas sociais hoje, mas isso não significa que existem mais ou piores problemas sociais agora. Seria possível alegar que a realidade era bem mais dura nos tempos em que se enforcava uma criança por ter roubado um pedaço de pão. (Hoje eles deveriam enforcar as pessoas que produzem nosso pão.)11

A partir daí Malcolm sugere que talvez fosse melhor que as crianças lessem “livros factuais” sobre drogas, a fim de prevenir seu uso. Também recomendava livros sobre sexo, que eram “bem mais transparentes do que aquilo que se publicava antes, e não seguem todas as noções que as famílias têm de como a informação deveria ser apresentada”. Ainda resenhou livros sobre a história dos negros adaptada para crianças, explicando que ela própria aprendera com eles.

Aparentemente tendo captado um talento em pleno florescimento, Shawn lhe deu uma coluna sobre mobiliário. Malcolm escreveu esses textos mesmo que o assunto não fosse de seu interesse, porque acreditava que eram um bom treinamento. Ao mesmo tempo, constituíam sua primeira incursão fora da crítica. Ela começou devagar, falando sobre comerciantes de móveis e design de interiores. Em 1970, sentiu-se motivada a escrever algo sobre o movimento emergente de liberação das mulheres, do qual todos estavam falando.

O texto foi publicado na New Republic. Seu nome saiu com um erro na assinatura (Janet Malcom), mas a postura jocosa estava de volta. Ela ironizava a ideia, então prevalecente no movimento feminista, de que a plena realização só poderia ser encontrada fora do lar.

Uma mulher que opte por deixar seu bebê sob os cuidados de outra pessoa para poder seguir em sua carreira jamais deveria ser hipócrita em relação a essa decisão dizendo a si mesma que está fazendo isso para o bem da criança. Ela está fazendo isso para si mesma. Pode até mesmo estar fazendo a coisa certa — decisões egoístas são, muitas vezes, as mais acertadas —, mas deveria ver muito bem o que está fazendo e se dispor a pagar o preço, em termos de afeto, que a negligência parental muitas vezes cobra.12

 

Não se trata apenas de um desconforto passageiro com esse tipo de postura. Sua afirmação de que “o novo feminismo pode ser uma causa até mais odiosa de infelicidade e descontentamento” era bastante comum naquela época — Didion também adotou essa linha muitas vezes, ao expor sua preocupação com a “leviandade” do movimento —, mas há certo constrangimento nessa argumentação. Ela não vinha de uma pessoa que estava construindo gradualmente sua independência como escritora, e sim de alguém que considerava a maternidade uma experiência invejável e não queria abrir mão de nada de bom que disso proviesse, independentemente da escolha que tivesse de fazer para isso. Seu texto não lembra em nada a presença lúdica dos ensaios que ela vinha publicando na New Yorker, os quais tinham se tornado fluxos de consciência elegantes e completos. Quando os editores da New Republic lhe pediram para responder às cartas iradas que chegavam, ela escreveu uma resposta tipicamente sarcástica:

Quanto àqueles que levantam questões de fundo, elas requerem considerações bem mais trabalhadas do que minhas obrigações domésticas me permitem. Assim que minha situação melhorar, espero poder apresentar outro ensaio sobre alguns dos pontos em questão.13

Talvez o desconforto fosse circunstancial. Na época em que Malcolm escreveu isso, seu marido, Donald, estava gravemente doente. Os médicos não conseguiam definir o que ele tinha; mais tarde, Malcolm concluiu que Donald sofria da doença de Crohn, ainda que não tivesse sido diagnosticado. Em pouco tempo, ele já não conseguia trabalhar. Embora naquele período a New Yorker fosse generosa com seus autores em termos financeiros, a situação causou sérias dificuldades para a família. Logo ficaria claro que ele estava morrendo.

Malcolm continuava a escrever sua coluna mensal sobre mobiliário, sem falhar. Muitos desses textos eram apenas registros catalográficos e descrições de artigos de que gostava. Em março de 1972, ela saiu pela primeira vez dos padrões. Para escrever uma coluna sobre mobiliário moderno, foi visitar o artista Fumio Yoshimura, “que até agora é mais conhecido por ser marido de Kate Millett do que por sua própria obra”.14 Millett ficara famosa, em 1972, por causa de seu best-seller Política sexual, uma espécie de libelo arrasador que procurava alçar o feminismo ao grau de crítica literária. Ao descrever o encontro com Yoshimura, Malcolm conta ter sido distraída por Millett. E a conversa acabou se encaminhando para a questão da liberação feminina.

Observei que os pais temem que meninos que não gostam de esportes se tornem homossexuais quando crescerem. “Um destino pior do que a morte”, murmurou Kate Millett, sem tirar os olhos do seu correio. Mais tarde entendi que a saída de Kate Millet da conversa expressava mais tato do que falta de educação.

Nesse ponto, Malcolm não consegue se segurar; o texto se transforma numa espécie de entrevista com Millett, a quem ela se refere pelo primeiro nome. 

O tom indireto, irônico e acadêmico de Política sexual está totalmente ausente na conversa com Kate Millett […]. As esculturas de Kate Millett se parecem ou são exatamente como Kate Millett. Possuem uma personalidade quadrada, pesada, forte e otimista.

Esta foi a primeira reportagem na linha que tornaria Janet Malcolm ao mesmo tempo venerada e polêmica. Nesse pequeno texto a partir de uma entrevista, ela começou a construir seu “eu”, a respeito do qual diria mais tarde que não era necessariamente confiável, mas que se tratava de um truque necessário. Era provável que os leitores ignorassem, naquele tempo, que estavam lendo uma entrevista de uma grande feminista feita por uma grande cética do movimento, mas que claramente já tinha lido a obra de Millett.

No último ano de vida de Donald — ele morreria em setembro de 1975 —, talvez suspeitando de que precisava construir uma carreira mais firme para si mesma, Janet Malcolm começou a diversificar seus interesses, passando a se voltar à fotografia. Ela ainda não tinha lido a obra de Susan Sontag sobre o tema, que vinha sendo publicada em capítulos, lentamente, na New York Times Review of Books. Só o fez nos anos 1980, quando se tornou amiga de Sontag e a convidou para almoçar. Ambas conversaram sobre as metáforas estigmatizantes das doenças.

Antes disso tudo, Malcolm fizera uma resenha a respeito de um livro sobre Alfred Stieglitz para a New Yorker e outra para o Times sobre uma retrospectiva da obra de Edward Weston. Nesta última, foi cautelosa e usou jargões demais. Tratava-se, no fim das contas, de um teste para se tornar a crítica de fotografia do New York Times. Ofereceram-lhe o cargo, mas William Shawn lhe disse que ela poderia ser a crítica de fotografia da própria New Yorker.

Ao publicar numa coletânea seus textos sobre fotografia, em 1980, com o título Diana and Nikon, Malcolm admitiu que levara um bom tempo para encontrar seu foco. “Relendo esses ensaios”, escreveu, “penso numa pessoa que está tentando cortar uma árvore sem nunca ter feito isso antes, não é forte e tem um machado sem gume, mas é muito obstinada.”15 Malcolm acreditava que só começara a se firmar em 1978, com o ensaio “Two Roads”, em que explorava as qualidades do registro instantâneo da fotografia. Esse texto se iniciava com a autora falando sobre a fotografia em termos morais, modelo que havia servido tão bem a Sontag. Com tal forma de ver as coisas, ela conseguia explicar mais facilmente o que lhe parecia ser tão perturbador em muitas fotografias:

O livro de [Walker] Evans não é a antologia da virtude e da ordem, mas poderia sê-lo. É uma obra repleta de caos e desordem, de confusão e bagunça monstruosas, de pessoas com olhos mortiços, vítimas e perdedores esmagados pela máquina indiferente do capitalismo, habitantes de uma terra tão exaurida espiritualmente quanto é erodido fisicamente seu solo.16

 Também se podia encontrar uma Malcolm mais relaxada em relação ao mesmo tema, com frases cada vez mais prazerosas de se ler:

Abrir ao acaso o livro Georgia O’Keeffe: A Portrait, publicado pelo Metropolitan Museum por ocasião de sua exposição de fotografias, é como pegar uma estradinha no interior e desembocar de repente em Stonehenge.17

 Ao mesmo tempo que já dominava o tema da fotografia, Malcolm começava a se cansar do assunto. Casara-se de novo, com seu editor na New Yorker, Gardner Botsford. E estava tentando parar de fumar, como ela mesma contou várias vezes, quando disse a Shawn que achava que precisava fazer algum “texto factual”. Como tema, escolheu a terapia familiar. Talvez se possa recorrer a uma visão freudiana para explicar isso, já que seu pai era psiquiatra. Mas o casamento entre a escritora e o tema da psicanálise resultou numa combinação memorável.

A psicanálise já era assunto, é claro, havia quase um século quando Malcolm começou a escrever a respeito. Mas, nos anos 1970, abordar a psiquiatria não era algo comum. A psicofarmacologia crescia; revistas faziam frequentes referências ao “pequeno ajudante da mãe”, o Valium. O movimento feminista, em grande parte, abominava a psicanálise, vendo nas ideias de Freud a base da repressão estrutural das mulheres. Mas a terapia ganhava cada vez mais popularidade, embora seus dias áureos nos Estados Unidos só fossem chegar no fim dos anos 1980 e 1990. Os livros do psicoterapeuta existencialista Rollo May, que fazia uma conexão entre as ideias dos filósofos existencialistas e a prática clínica, eram extremamente populares, em especial em meio à elite cultural, que, em tese, assinava a New Yorker. Isso tudo despertava muita curiosidade sobre o assunto.

Malcolm inaugurou seus trabalhos sobre a prática da psiquiatria moderna com um texto sobre terapia familiar intitulado “The One-Way Mirror”, segundo o qual essa prática punha um fim ao pensamento psicanalítico. Ao acrescentar mais pessoas na equação, a terapia se tornava mais conflitiva, mais estratégica, e era impossível manter a confidencialidade. Malcolm tratava de tudo isso com um olhar cético, mas também permitia que o terapeuta familiar se expressasse no texto, soando como um vendedor ambulante vestindo um paletó surrado:

Dentro de uma ou duas décadas, a terapia familiar vai se impor à psiquiatria, por tratar do homem em seu contexto. É uma terapia do nosso século, enquanto a terapia individual é algo do século XIX. Não se trata de uma afirmação pejorativa. Ocorre apenas que as coisas evoluem e mudam, e que em qualquer período histórico certas formas de olhar e de reagir às questões da vida começam a aflorar por todos os lados. A terapia familiar é para a psiquiatria aquilo que Pinter é para o teatro ou que a ecologia é para a ciência da natureza.18

 O texto não tinha um caráter de crítica à psicanálise como um todo. Esse papel estaria reservado para a reportagem seguinte, com um terapeuta típico que ela chamou de Aaron Green, um nome fictício. Malcolm usou suas longas entrevistas com ele como pretexto para elaborar uma crítica aos psicanalistas e à psicanálise de modo geral. Em resumo, ela o analisava. Até mesmo o divã do terapeuta aparecia no texto:

 O divã, vazio, olhava para a sala com um ar expressivo. “Não sou um velho sofá de espuma qualquer”, parecia dizer. “Sou o divã.”19

Esse toque delicado revela algo importante sobre a técnica de escrita de Malcolm. Mesmo adotando uma perspectiva crítica, ela não usa de crueldade. Ilustra um problema e pondera sobre suas possíveis soluções. Mas, como observou um resenhista, ela é mais “maliciosa”.20 Aaron Green oscila entre um ser ansioso e um tanto apatetado, mas, ao mesmo tempo, é bastante simpático. Sob o questionamento de Malcolm, ele chega a admitir que sua atração pelo ofício tem o caráter de uma falha em sua própria psicologia:

Fui atraído pelo trabalho psicanalítico justamente por causa da distância que ele criaria entre mim e as pessoas que eu trataria. É uma situação de abstinência bastante confortável.21

Malcolm prossegue, então, se aprofundando nas imprecisões e hipocrisias dessa “profissão impossível”: a forma como sua duração parece se tornar cada vez mais longa; o fato de que o que o paciente provavelmente obterá da psicanálise não será uma cura, mas uma “transferência”, fenômeno pelo qual se redirecionam para a relação com o terapeuta os sentimentos reais e os desejos sublimados da infância atrás de cuja solução o paciente estava quando buscou a terapia. Para Malcolm, a maior parte desses problemas era gerada pelas próprias escolas de formação psicanalítica, que seriam procuradas pelos terapeutas como uma espécie de pai substituto. Essa formação, pondera Malcolm delicadamente, insiste em que um bom psicanalista deva ser, ele próprio, amplamente analisado.

Mas ela não transforma Green numa caricatura de si mesmo. Ele parece infeliz e confuso, e muito possivelmente sente necessidade de mudar de trabalho. Mas não é uma pessoa maldosa. Publicado no livro Psicanálise: A profissão impossível, o perfil de Aaron Green provocou fortes reações de todos os cantos. Parecia até que quase todos os cidadãos norte-americanos já tinham experimentado em algum momento dos anos 1970 a psicanálise para depois abandoná-la com repulsa, sentindo-se confusos em relação ao que poderia ter aportado a eles. O texto de Malcolm falava desse paradoxo de forma tão bela que todos os resenhistas, inclusive psicanalistas, se mostraram encantados.

Entusiasmada, ela entabulou um segundo projeto relacionado à psicanálise. Seria mais um longo perfil de um profissional. Porém, em vez de extrair seu personagem da abundante seleção de terapeutas de Manhattan, Malcom foi ao encontro de Jeffrey Moussaieff Masson. A “bomba” de Masson estava no conjunto não publicado de cartas trocadas entre Freud e um de seus discípulos, Wilheim Fliess. Masson apressou-se em declarar aos jornais ter descoberto nessa correspondência que Freud não havia de fato abandonado aquilo que era conhecido como a “tese da sedução”. Em sua forma original, a teoria sustentava que as experiências sexuais da infância, frequentemente com um elemento de sedução por parte de um dos pais, eram a fonte das neuroses da maioria dos pacientes. Ao negar essa teoria, em 1925, Freud explicou que tinha chegado à conclusão de que, ao relatar essas experiências, muitas vezes os pacientes não descreviam literalmente o que de fato teria acontecido, e sim uma verdade de ordem psíquica. De acordo com Masson, Freud estaria certo originalmente, ao suspeitar de que um abuso sexual da criança — tal como os usos e costumes contemporâneos o reconheceriam — estaria no centro da maior parte dos transtornos psicológicos.

Malcolm se interessou por Masson por causa dessa posição. Enquanto produzia outra reportagem em Berkeley, decidiu lhe telefonar. Ele falava bem e tinha um talento para frases reveladoras. Contou-lhe de seus casamentos. Contou-lhe de seus casos. Contou-lhe que Anna Freud e seus outros mentores tinham dúvidas a respeito dele. “Eu era como um gigolô intelectual”,22 disse ele, em conversa gravada. “Você se satisfaz com ele, mas não o leva a público.” É claro que Masson estava disposto a encontrar com seu público, pois preparava naquele momento um livro sobre a revelação que dizia ter encontrado na correspondência Freud-Fliess. Mas tanto Anna Freud quanto Kurt Eissler — o homem que contratou Masson para trabalhar nos Arquivos Sigmund Freud — disseram a Malcolm que acreditavam que Masson tinha perdido completamente a cabeça e que lera as cartas de forma equivocada. Foi o cerco que sofreu de seus antigos companheiros que levou Masson a acreditar que Malcolm serviria como uma espécie de amiga. Ele sabia que ela planejava escrever sobre o que lhe contara. Mesmo assim, estava preparado para falar com Malcolm horas a fio, detalhadamente, sobre suas atividades sexuais, seus ressentimentos na profissão e os vários elementos que constituíam seu poderoso senso de autovalorização. Grande parte do texto que ela acabou publicando consiste em longas citações dele, explanações alternadas entre a leitura idiossincrática de Freud e o número de mulheres com as quais havia dormido. Eis um trecho significativo:

Sabe o que Anna Freud me disse uma vez? “Se meu pai estivesse vivo, não gostaria de ser analista.” Juro que foram essas as palavras dela. Não. Espere. Isso é importante. Eu é que disse a ela: “Srta. Freud, tenho a sensação de que, se seu pai estivesse vivo, ele não seria um analista”. E ela disse: “Você tem razão”.23

 A quase totalidade dos leitores dos textos, intitulados “Trouble in the Archives”, achou que Malcolm apresentara Masson deliberadamente como uma espécie de bufão, destruindo assim sua credibilidade. Até mesmo um admirador tão inteligente e perspicaz como o crítico Craig Seligman chamou o resultado de “obra-prima em termos de assassinato de um personagem”. Não há dúvidas de que ninguém sai da leitura de Nos arquivos de Freud — título do livro que a Knopf publicou mais tarde reunindo essa série de artigos — vendo em Jeffrey Mousaieff Masson um cidadão íntegro. Até mesmo Malcolm, ao final, falando para um dos analistas envolvidos no caso, acabou por fazer uma leitura negativa de Masson: “Eu me pergunto se em algum momento ele realmente se preocupou com alguma coisa”.24

Mas isso me parece ser uma leitura equivocada daquilo que Malcolm almejava. Apesar da polêmica surgida em torno do livro — voltaremos a ela mais adiante —, ela reproduziu quase exatamente aquilo que Masson lhe dissera ao gravador. Além disso, não tinha alternativa, considerando o material que Masson lhe passara; não estava distorcendo a verdade, e sim divulgando a entrevista tal e qual. “Assassinato do personagem” implicava dizer que não houve cooperação entre a repórter e o sujeito em questão.

Se Malcolm tinha ou não a obrigação de expor a forma como se desenvolvia a autodestruição de Masson se tornou uma questão que acabaria ocupando toda a década seguinte de sua vida.

Depois do lançamento do livro, Masson, como era de esperar diante de sua reserva ilimitada de narcisismo, ficou furioso. Escreveu uma carta ao New York Times Book Review queixando-se de que fora difamado. Malcolm, de seu lado, retrucou de forma ferina:

O perfil é baseado em mais de quarenta horas de conversas gravadas com o sr. Masson, iniciadas em Berkeley, Califórnia, em novembro de 1982, durante uma semana de entrevistas, que prosseguiram ao telefone durante os oito meses seguintes […]. Tudo o que reproduzi como tendo sido dito pelo sr. Masson foi de fato dito por ele, quase palavra por palavra. (O “quase” se refere a mudanças introduzidas em nome da sintaxe.)25 

Masson entrou com uma ação por difamação no valor de 10,2 milhões de dólares. Desse montante, 10 milhões eram por danos morais. Era uma soma absurda, assim como era absurda, de certa forma, a própria ação. Como observaram vários comentaristas ao longo de todo o processo26 — que, para tristeza de Malcolm, se estendeu por uma década inteira —, Masson teve de mudar vários detalhes em sua acusação. Muitas vezes, ele incluiu em sua queixa declarações que com certeza havia feito e tinham sido gravadas; Malcolm conseguiu comprová-lo várias vezes no tribunal.

Mas havia alguns poucos pontos pertinentes. Um deles era a tal expressão “gigolô intelectual”, que não foi encontrada em nenhuma das gravações. Malcolm também alterou algumas citações, embora a maior parte delas fosse com o objetivo de tirar algumas afirmações mais extravagantes de Masson, como ela explicou em carta à revista. Isso deixou a questão mais espinhosa no tribunal. Como no caso de Hellman contra McCarthy, o problema acabou sendo não tanto se Malcolm acabaria vencendo o processo, como de fato aconteceu, mas quanto isso custaria a ela enquanto estivesse em curso.

Em 1987, a ação inicial de Masson foi rejeitada. “Eu deveria saber, tendo escrito aquele perfil, que ele não desistiria tão facilmente”,27 diria Malcolm depois. Mas ela decidiu voltar suas energias para outro projeto.

A primeira linha de O jornalista e o assassino, publicado inicialmente em três partes na New Yorker em 1989, é bastante conhecida. “Qualquer jornalista que não seja demasiadamente obtuso ou cheio de si sabe que o que ele faz é moralmente indefensável”,28 escreveu Malcolm. Essa frase foi explosiva. Muitas pessoas parecem nem sequer ter lido o livro a que se seguia. Da primeira vez que vi Malcolm pessoalmente, foi vinte anos depois de ter escrito essa frase, e ela estava sobre um palco bastante alto no New Yorker Festival falando sobre sua obra. Um jovem, no meio do público, levantou-se e a questionou sobre a frase, furioso. Depois de algum tempo de silêncio, ela respondeu: “Bem, foi um pouco de retórica, você entende”.29 O jovem não pareceu ter entendido.

Essa foi uma pequena amostra daquilo que viria a acontecer por ocasião da publicação do longo estudo de Malcolm sobre uma disputa que ocorreria entre o jornalista Joe McGinniss e o assassino Jeffrey MacDonald. McGinniss acertara com MacDonald o acesso exclusivo a ele e seus advogados de defesa durante seu julgamento, em 1979, pelo assassinato de sua família. MacDonald concordou com isso, achando que sairia ganhando alguma coisa. McGinniss já era conhecido, à época, por ter escrito um livro intitulado The Selling of the President 1968, que reportava de uma forma nada lisonjeira as tentativas da campanha de Nixon de tornar seu candidato mais apresentável, por assim dizer. McGinniss angariou bastante respeito com essa obra.

Infelizmente para MacDonald, ao final do julgamento McGinniss decidiu que ele era culpado pelos crimes de que era acusado. O livro que resultou daquele acordo, uma obra comercial intitulada Fatal Vision, foi um enorme best-seller, mas afirmava que MacDonald era um psicopata que havia assassinado friamente a família inteira. Então ele processou McGinniss, alegando que o jornalista o enganara com relação à natureza de seu projeto. E, de fato, em relação a vários padrões de atuação jornalística, McGinniss realmente avançara o sinal. Por exemplo, MacDonald tinha cartas em que McGinniss afirmava à sua fonte que achava que sua condenação significava uma grave injustiça.

O começo do relato de Malcolm a respeito prossegue da seguinte forma:

Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas, ganhando sua confiança e depois as traindo sem nenhum remorso. Tal qual a viúva crédula, que desperta um belo dia e descobre que aquele jovem encantador sumiu com todas as suas economias, o sujeito que consente em ser objeto de um texto de não ficção aprende — quando a reportagem ou o livro saem — sua dura lição.30

Considerando que esse parágrafo fora escrito a partir da perspectiva da pessoa traída, muitos que leram o texto consideraram que Malcolm estava construindo ali uma acusação contra o jornalismo. Quando os artigos de Malcolm saíram, em 1989, as fileiras do jornalismo estavam lotadas de futuros Woodwards e Bernsteins convencidos de que seu ofício poderia realmente assumir as rédeas do poder. Como resultado disso, muitos sentiram que ela estava atacando sua honra. Seguiu-se, assim, uma saraivada excepcionalmente prolongada de críticas.

“A srta. Malcolm parece ter criado uma serpente que engole o próprio rabo: ataca a ética de todos os jornalistas, incluindo a si mesma, depois fracassa ao revelar quanto ela mesma foi longe no passado desempenhando o papel de jornalista confidente”,31 esbravejou um colunista do New York Times, que também acusou Malcolm, equivocadamente, de aceitar “invencionices”. Christopher Lehmann-Haupt, um dos críticos literários mais importantes da época, acusou-a de absolver MacDonald ao denunciar McGinniss violentamente. Um colunista do Chicago Tribune, sentindo-se injuriado, olhou ao seu redor na redação e viu “colegas trabalhadores registrando as ações dos políticos, noticiando avanços na medicina […] Alguém pode me dizer o que há de errado com qualquer uma dessas tarefas jornalísticas normais?”.32

Mas Malcolm também teve quem a defendesse. No Los Angeles Times, David Rieff lhe fez muitos elogios.33 Para ele, a posição de Malcolm era muito próxima daquela expressa por Joan Didion numa frase amplamente festejada segundo a qual “os escritores estão sempre vendendo alguém, como numa liquidação”. Em entrevista à Columbia Journalism Review, Nora Ephron, que ficara amiga de Malcolm algum tempo antes, declarou: “O que Janet Malcolm disse me parece tão razoável que fiquei espantada que alguém pudesse fazer barulho por causa disso”.34 “Acredito que, para ser um bom jornalista, você precisa estar disposto a fazer esse tipo de ato que Janet descreve como uma traição.” Não era uma atitude tão distante, no fim das contas, daquela de Phoebe Ephron, para quem “tudo é cópia”. O outro lado da história é que às vezes as pessoas não querem sê-lo.

(Jessica Mitford, célebre jornalista investigativa que trouxera à tona a indústria da morte em 1963 e que pertencia a uma família cujas mulheres poderiam ser chamadas de “afiadas”, concordava com Nora Ephron: “Achei maravilhosos os textos de Malcolm”.)35

Outra questão em debate era a da identificação das semelhanças entre o que acabara de acontecer entre Masson e Malcolm e a situação que ela havia analisado em O jornalista e o assassino. Vendo ali uma oportunidade para voltar ao assunto, Masson disse a um repórter da revista New York que havia lido a primeira parte do texto como se fosse uma carta aberta dirigida a ele próprio, uma espécie de confissão dos pecados de Malcolm.36 Naquele período, ele também decidira recorrer contra o arquivamento de sua ação. O processo que se seguiu passou por todas as etapas até chegar à Suprema Corte. Em 1994, por fim, Masson foi derrotado no tribunal.

Mais tarde, Malcolm disse compreender por que as pessoas a atacaram tanto na ocasião:

Quem não sentiria prazer em assistir à queda de alguém tão arrogante? O fato de que quem estava sendo tragada pelo lamaçal era uma autora da New Yorker só incrementava aquele contentamento perverso. Na época, a revista ainda vivia em seu confortável casulo de superioridade moral que irritava muito os que trabalhavam em outras publicações. Não ajudei muito a mim mesma ao me comportar da maneira como os autores da New Yorker achavam que tinham de se comportar quando abordados pela imprensa: como pequenas réplicas de William Shawn, que era avesso a qualquer publicidade. Então, em vez de me defender contra as falsas acusações que Masson fazia numa sucessão de entrevistas, mantive-me em um silêncio ridículo.37

Esse silêncio não foi, porém, absoluto. Enquanto o recurso impetrado por Masson era analisado, Malcolm publicou o livro O jornalista e o assassino com um posfácio inédito. Nele, nega que seus problemas com Masson se refletissem na análise do caso McGinniss-MacDonald. E afirma que sentia certa compaixão por Masson, que estaria sendo mais uma vez usado por jornalistas, que o procuravam para obter citações que pudessem ser usadas para atacá-la, mas depois voltariam a derrubá-lo.38

Nesse posfácio, Malcolm também defendeu a edição de citações. Era uma questão presente no processo: Masson afirmara que, ao usar frases soltas e trocá-las de ordem, Malcolm ultrapassara a fronteira que lhe cabia como jornalista. Ela defendeu essa prática com um argumento que repetiria várias vezes ao longo de sua carreira: escrever em primeira pessoa seria sempre passível de desconfiança:

Diferentemente da primeira pessoa de uma autobiografia, que em tese representa o próprio autor, a primeira pessoa no jornalismo só se liga ao autor de uma forma tênue — a forma, digamos, como o Super-Homem se liga a Clark Kent. O “eu” jornalístico é um narrador superconfiável, um funcionário ao qual se atribuem tarefas essenciais de narração, argumentação e tom, uma criação ad hoc, como o coro numa tragédia grega. É uma figura emblemática, a encarnação da ideia de um observador desapaixonado da vida. No entanto, leitores que admitem facilmente a ideia de que o narrador da ficção não é a mesma pessoa que o autor do livro resistem teimosamente à ideia do “eu” inventado do jornalismo; e até mesmo entre os jornalistas existem aqueles que têm dificuldade de se distinguir do Super-Homem de seus textos.39

Esse convite à descrença em relação ao próprio autor é fundamental para os efeitos almejados pela obra de Malcolm. Acrescenta algo à figura rígida da primeira pessoa que vinha se consolidando ao longo do século, desde Rebecca West até Didion e Ephron: certo nível de incerteza. A experiência da leitura de um texto de Janet Malcolm deve ser sempre relacionada a esse senso de incerteza, tanto em relação ao tema abordado — seria McGinniss de fato tão mau assim, ou Masson realmente um idiota? — quanto a com qual tipo de truque ardiloso o narrador possa estar nos envolvendo.

Em Malcolm, há sempre um significado adicional de sentido, algum truque. Assim como um psicanalista induz seu paciente a analisar e atentar para suas reações e sentimentos habituais, Malcolm provoca uma resposta emocional que leva muitos jornalistas a refletir sobre aquilo que de fato conhecem sobre sua profissão.

No final das contas, o furor gerado em torno de O jornalista e o assassino não fez mais do que demonstrar a tese que Malcolm propunha. O tema do livro é o próprio jornalismo, no sentido amplo da palavra. Sua tese é de que o sujeito tematizado sempre se sentirá traído por aquilo que outra pessoa escrever sobre ele. O próprio “jornalismo” se sentiu traído pelas assertivas de Malcolm a seu respeito. Por um golpe do destino, as coisas avançaram nessa direção; O jornalista e o assassino é lido hoje na maior parte das faculdades de jornalismo. Como a própria Malcolm diria caso perguntassem, no fim ficou provado que ela estava certa.

 

Toda a obra posterior de Malcolm acabou ficando marcada pelas mesmas preocupações de O jornalista e o assassino. Para onde quer que seus olhos se voltassem, ela encontrava histórias cheias de contradições. Escreveu sobre julgamentos de homicídios (em Iphigenia in Forest Hills) e sobre malversações no mundo corporativo (em The Crimes of Sheila McGough), com a atenção concentrada nas versões conflitantes contadas pelos dois lados e suas inconsistências aparentemente irreconciliáveis. Escreveu sobre o artista plástico David Salle (em “Forty-One False Starts”),40 e a partir daí pareceu questionar a própria utilidade de continuar fazendo jornalismo. Adotou um claro ceticismo em relação às narrativas, de forma muito semelhante a Didion — um olhar cheio de dúvidas sobre as histórias que contamos para nós mesmos —, em suas análises sobre as pessoas que encarregamos, antes de quaisquer outras, de nos contar histórias: os escritores, os artistas, os pensadores.

O melhor exemplo disso talvez seja A mulher silenciosa, uma série de reportagens para a New Yorker depois reunidas em livro sobre a vida de Sylvia Plath. Plath fora uma poeta e uma ficcionista precoce que publicara muitas obras na casa dos vinte anos, embora nunca tivesse se tornado muito famosa. Acabou por se mudar para a Inglaterra e casar com o também poeta Ted Hughes, com quem teve dois filhos. Ela publicou um livro de poemas, mas continuou se sentindo frustrada profissionalmente. Então, em 1963, depois que Hughes a trocou por outra mulher, cometeu suicídio. Alguns anos depois de sua morte, seu virulento livro de poesia assim chamada confessional, Ariel, foi publicado e recebeu enorme aclamação. Seu romance A redoma de vidro, igualmente póstumo, também se tornou um clássico.

E foi aí que o problema começou.

Os admiradores póstumos de Plath passaram a ver na obra uma exposição clara do sofrimento que a levara ao suicídio, e culparam Hughes. Havia algumas justificativas para a sua má reputação. Nos últimos meses de vida de Plath, ele a trocara por outra mulher, deixando-a sozinha em um país estrangeiro, sem familiares e com duas crianças pequenas. O sucesso de Plath em meio ao espectro feminista como autora da cáustica poesia de Ariel significava que uma grande quantidade de ira fora canalizada em Hughes. Em consequência, ele e sua irmã, Olwyn, tornaram-se muito reticentes e cautelosos em relação a quem dariam autorização para escrever biografias, as quais poderiam controlar por meio da autorização ou não de citações de sua obra não publicada.

O interesse de Malcolm pelo assunto foi despertado pela biógrafa Anne Stevenson, à qual eles forneceram esse acesso. Malcolm disse que a conhecera na Universidade de Michigan.

Ela chamou minha atenção certa vez na rua: magra e elegante, com um ar de intensidade desajeitada e paixão, gesticulando muito, cercada por rapazes de visual interessante. Naqueles dias, eu admirava enormemente tudo o que se referia à arte, e Anne Stevenson era uma das figuras que brilhavam com uma incandescência especial em minha imaginação.41 

A biografia de Plath por Stevenson, Amarga fama, foi, no entanto, muito atacada. Numa nota, a autora agradecia enfaticamente a Olwyn Hughes, o que sugeria que ela havia não apenas lido, mas também comentado e depois pedido mudanças no original antes de sua publicação. Isso foi visto como um golpe contra a integridade de Stevenson como biógrafa, considerando-se que a biografia seria mais objetiva se os herdeiros não tivessem lido o manuscrito antes da publicação. Malcolm também tinha reticências sobre o livro, mas eram de outro tipo. Ela se sentia incomodada com a postura fingida de absoluto equilibro assumida por Stevenson como biógrafa. Comparada com as pessoas que concordaram em falar no livro sobre suas próprias experiências com Plath — e uma delas a odiava de fato —, essa necessidade de ponderar cautelosamente sobre esse ou aquele testemunho era algo enfadonho.

Essa preferência por vozes mais fortes com experiências pessoais levou Malcolm a simpatizar com Hughes e sua irmã. Ela descobriu cartas que ele escrevera para alguns dos principais personagens de toda a história se queixando da maneira como tinham transforado sua experiência em “história oficial — como se eu fosse um quadro na parede ou algum prisioneiro da Sibéria”. Para Malcolm, era um argumento convincente, e ela afirmou isso mesmo considerando que vários personagens — as outras pessoas que se diziam testemunhas diretas da personalidade de Plath — podiam ser questionados em suas motivações. O livro se encerra com uma demolição total das declarações daquela que poderia ser chamada de uma das testemunhas-chave do caso Plath. Não vou dizer de quem se trata; você terá que ler. A questão, para Malcolm, mais uma vez, é que não é preciso acreditar em ninguém, não é preciso reagir às suas afirmações sobre os fatos com o que ela chamou, em dois contextos diferentes, de “serenidade bovina”.

Nesse caminho, porém, Malcolm acabou por fazer uma revelação sobre si mesma. Ela foi visitar o crítico Al Alvarez, que havia sido um dos últimos amigos de Plath. Inicialmente, ele conversou de forma amável, contando coisas sobre as festas na casa de Hannah Arendt nos anos 1950; depois se pôs a explicar que Plath se tornara uma mulher “grande” demais para que se sentisse atraído por ela:

Vi aonde ele queria chegar, e isso me deixou bastante desconfortável. Assim como Alvarez havia me tomado, lisonjeiramente, por engano, como alguém que poderia ter sido convidada para as festas de Hannah Arendt nos anos 1950 (tenho dúvidas até mesmo se eu sabia quem era Hannah Arendt na época), agora, de forma constrangedora, me tomava equivocadamente como uma pessoa que poderia ouvir suas observações sobre mulheres que não achava atraentes sem me sentir angustiada. Senti-me como um judeu que se vê incluído por acaso no meio de uma conversa antissemita porque ninguém sabe de sua origem.42

 Vê-se, aqui, um sinal explícito de feminismo, uma insatisfação declarada com a maneira como os homens falam sobre as mulheres até mesmo com uma mulher. Trata-se de um tema que levou um longo tempo para aparecer na obra de Malcolm. Ela se aproximou gradualmente do feminismo depois de escrever essa extensa crítica, nos anos 1970. Ao mesmo tempo, travou amizade com algumas escritoras. Chegou a conhecer um pouco Sontag, embora seus escritos para Sontag revelassem traços de profunda insegurança.

Como Didion, Malcolm ficaria amiga de Nora Ephron. E o feminismo era um de seus assuntos constantes. Com Ephron já idosa, ambas participaram de um clube do livro sobre O carnê dourado apenas para entender do que se tratava.

Em 1986, Malcolm publicou “A Girl of the Zeitgeist”, um perfil de Ingrid Sischy, concluído durante o primeiro processo movido por Masson. Uma de suas motivações era a maneira como uma mulher de forte personalidade continuou a traçar o seu próprio caminho em meio às negativas que lhes eram impostas por um grupo de homens de personalidade igualmente forte. A certa altura, Sischy conta a Malcolm sobre um sujeito que ela conheceu num almoço que não demonstrou muito interesse nela por causa de sua aparência. Malcolm imediatamente se imaginou como aquele homem:

Tive a ideia de escrever a respeito dela depois de ver a Art­ forum se transformar de uma publicação de uma opacidade sem vida em uma revista com uma contemporaneidade tão rebelde e assertiva que só seria possível imaginar sua editora como uma espécie de modelo moderno combativo, uma nova sensibilidade feminina admirável perdida no mundo. E quem estivera em minha casa fora uma jovem mulher agradável, inteligente, despretensiosa, responsável e ética que não tinha o menor traço das qualidades teatrais que eu intimamente esperava e a quem, como o político no almoço, eu teria dado as costas decepcionada.43

As expectativas que as mulheres têm umas em relação às outras e a maneira como cada uma de nós forma uma opinião sobre as demais embutem muitas expectativas em relação às outras e muitos momentos de decepção. Isso parece fazer parte do fato de ser uma mulher que pensa e que fala publicamente sobre o pensar.

 

1. In the Freud Archives (Knopf, 1983), p. 35.

2. Ibid., p. 133

3. “Janet Malcolm, The Art of Nonfiction No. 4”, entrevista a Katie Roiphe, Paris Review, primavera de 2011.

4. “A Star Is Borne”, New Republic, 24 de dezembro de 1956.

5. “Black and White Trash”, New Republic, 2 de setembro de 1957.

6. Carta ao editor por James F. Hoyle, New Republic, 9 de setembro de 1957.

7. Carta ao editor por Hal Kaufman, New Republic, 30 de setembro de 1957.

8. “D. H. Lawrence and His Friends”, New Republic, 3 de fevereiro de 1958.

9. Carta ao editor por Norman Mailer, New Republic, 9 de março de 1959.

10. “Children’s Books for Christmas”, The New Yorker, 17 de dezembro de 1966.

11. “Children’s Books for Christmas”, The New Yorker, 14 de dezembro de 1968.

12. “Help! Homework for the Liberated Woman”, New Republic, 10 de outubro de 1970.

13. “No Reply”, New Republic, 14 de novembro de 1970.

14. “About the House”, The New Yorker, 18 de março de 1972.

15. Prefácio de Diana and Nikon (1997).

16. “Slouching Towards Bethlehem, Pa”, The New Yorker, 6 de agosto de 1979.

17. “Artists and Lovers”, The New Yorker, 12 de março de 1979.

18. “The One-Way Mirror”, The New Yorker, 15 de maio de 1978.

19. Psychoanalysis: The Impossible Profession (Knopf, 1977), p. 47.

20. Joseph Adelson, “Not Much Has Changed Since Freud”, The New York Times, 27 de setembro de 1981.

21. Psychoanalysis, p. 110.

22. Ibid., p. 41.

23. Ibid., p. 38.

24. Ibid., p. 163.

25. Carta ao editor por Janet Malcolm, The New York Times, 1 de junho de 1984.

26. Ver, por exemplo, Robert Boynton, “Who’s Afraid of Janet Malcolm?”, Mirabella, novembro de 1992, disponível em <http://www.robertboynton.com/articleDisplay.php?article_id=1534>.

27. “Janet Malcolm, The Art of Nonfiction No. 4”.

28. The Journalist and the Murderer (Vintage, 1990), p. 3.

29. Recordo-me dessa observação feita por Malcolm numa apresentação com Ian Frazier no New Yorker Festival em 30 de setembro de 2011.

30. The Journalist and the Murderer, p. 3.

31. Albert Scardino, “Ethics, Reporters, and the New Yorker”, The New York Times, 21 de março de 1989.

32. Ron Grossman, “Malcolm’s Charge Turns on Itself”, Chicago Tribune, 28 de março de 1990.

33. David Rieff, “Hoisting Another by Her Own Petard”, Los Angeles Times, 11 de março de 1990.

34. Nora Ephron na Columbia Journalism Review, 1 de julho de 1989.

35. Jessica Mitford na Columbia Journalism Review, 1 de julho de 1989.

36. John Taylor, “Holier Than Thou”, The New Yorker, 27 de março de 1989.

37. “Janet Malcolm, The Art of Nonfiction No. 4”.

38. “The Morality of Journalism”, The New York Review of Books, 1 de março de 1990.

39. The Journalist and the Murderer, pp. 159-60.

40. Ver artigo na New Yorker, 11 de julho de 1994.

41. The Silent Woman: Sylvia Plath and Ted Hughes (Vintage, 1995), p. 13.

42. The Silent Woman, p. 48.

43. “A Girl of the Zeitgeist”, The New Yorker, 20-7 de outubro de 1986.

 


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