Suturar o tempo: sobre Guadalupe Fernandez Presas

Por Guilherme Gontijo Flores

Guilherme Gontijo Flores escreve sobre uma série de colagens que influenciou POTLATCH, seu novo livro de poemas.

 

COLUNA # 8, 2021 - Guadalupe Fernandez Presas. Reprodução de colagem manual feita com originais de imagens de tomografias computadorizadas de coluna vertebral e com originais de fotografias impressas de arquivo pessoal. Costuras feitas com fio de algodão – Dimensões: 70x28cm (Série Colunas; Irradiações de Corpo Ausente, desde 2020)

 

Queria contar rapidamente de uma série de obras que vêm me tocando profundamente nos últimos tempos e que pude ver nascer e desaguar. Trata-se da série de colagens intitulada Colunas (Deságues), da fotógrafa e artista plástica Guadalupe Fernandez Presas que podem ser consultadas no seu site: https://www.guadalupepresas.com/ e que fazem parte de um projeto maior em andamento, chamado Irradiações de corpo ausente. Vejo estas obras como um amigo desde 2020, pelo menos, não posso negar, mas nelas vejo também um sonho do que tento fazer pela escrita, porque aí percebo o que mais procuro: o ponto raro em que a estética pode se assumir muito violentamente ética e política; e isso não necessariamente diz nada de um engajamento explícito sobre as pautas políticas da última semana, porque tudo se diz no elo complexo entre sujeito e sociedade, dois pólos que nunca se opuseram, mas se contrademandam incessantemente.

 

Essas obras de Guadalupe realizam um ato de subjetividade interligada, porque juntam fotos de radiografias e tomografias do corpo do seu pai (então adoecido, que pouco depois veio a falecer) com fotos de família variadíssimas, que se desdobram em espaços, plantas, bichos, pedras, ares, prédios, casas, rastros de asfalto e terra, céu e nuvem dispersos. Tudo isso marcado por uma costura explícita que reúne todas as imagens numa colagem que simula a um só tempo a coluna vertebral e a corrente de rio, o lado de dentro e o lado de fora, a visão do invisível revirado e a incapacidade de ver o visível disperso que ali se reúne como coisa orgânica. Estamos num mundo em que um sujeito só pode nascer por atravessamentos de ordens absolutamente diversas; eu diria ainda mais, incompatíveis. Ordens que só podem se conformar formando uma pessoa, num movimento doloroso de sutura, de combinação forçada que inescapavelmente interliga, seja pelo gesto amoroso da memória, seja pela conjuntura interminável dos acasos que nos fazem.

 

Um ponto prende especificamente o meu olhar nestas colunas e deságues. O modo como cada sutura se dá, na costura da mão de Guadalupe; a maneira como essa mão que não vemos não para de se expor, de nos propor um convite de convívio. Nesse sentido, é mais forte, muito mais forte, do que uma colagem tradicional, porque de fato, nestas obras, cada matéria se revela incongruente com o todo; cada uma delas explicita a presença algo violenta da artista que as costura para um desenho outro, do qual nunca fizeram parte. Assim se encontram ainda mais inesperadamente com pontos deslocados de outras vivências numa mesma convivência interna-externa. As fotos, em parte sobrepostas, convidam o anseio de um toque que perceba seus desencontros e asperezas em tridimensionalidade para além da foto que as guarda, que estranhem para além da visão também a rugosidade da linha que tudo costura, furando a matéria que deve combinar, isto é, abrindo um furo naquilo que parecia inteiro, para dar lugar a uma inteireza outra, toda feita de fragmentos.

 

COLUNA # 8, 2021 - Guadalupe Fernandez Presas. Reprodução de colagem manual feita com originais de imagens de tomografias computadorizadas de coluna vertebral e com originais de fotografias impressas de arquivo pessoal. Costuras feitas com fio de algodão – Dimensões: 70x28cm (Série Colunas; Irradiações de Corpo Ausente, desde 2020)

 

Mais ainda, estas colagens têm duplamente um fundo no seu fazer manual. Por um lado, um fundo biográfico que não se confunde nunca com a exposição objetiva dos fatos vividos, mas se forma com retalhos deslocados e realocados segundo uma leitura do vivido como dentro-fora, sujeito em vida com a comunidade dos vivos e mortos. Por outro, o fundo mesmo de cada obra, com sua sutura do outro lado, reunindo uma série de nadas sobre os avessos das folhas brancas de cada foto. Ali a costura é contraponto de bordado, sim, porém também o rastro do que não pode entrar em qualquer conjunto coerente. São verdadeiras suturas de pele, couro, são como cicatrizes dos pontos que tomamos, na cabeça, nas pernas, por todo o corpo, e que hoje marcam o que já foi juntado e quase não faz mais sentido, a não ser que assumamos esse curtume vivo que somos como um movimento de fluxo em busca de deságue. Pontos no corpo que guardam um trauma de que todos somos feitos. Não custa lembrar: no fundo, no fundo, a própria trama neuronal que (re)produz as memórias, a fundação das facilitações entre sinapses, pode ser materialmente lida como uma cicatriz no cérebro, como uma grande trama suturada que nos fere e forma; aquela que jamais veremos, no mote mesmo em que nos faz ver a matéria irrepetível do passado.

 

Somos amigos, Lupe e eu, mas sinto nestas obras uma afinidade tão imensa com o que tentei realizar em Potlatch, que o que aqui ela faz se torna, para além da forte capa a partir de uma instalação de Sofia Borges (Natureza morte com martelo e ossada), uma verdadeira contraimagem, quem sabe até contramiragem dos poemas que fiquei escrevendo e suturando ao longo de pelo menos cinco anos. O encontro de poéticas americanas, europeias, africanas, asiáticas, o suporte de um ritual que se encontra mesmo na Oceania, vai costurando, como dentro e fora confundidos, ecos de coisas dispersas que produzem um sujeito diante do horror cotidiano destes nossos tempos: notas de jornal, Paul Celan, Arctic Monkeys, Corão, lamento lakota, pantum malásio, pequenas cenas de um cotidiano banal que vivo entre afazeres e amores etc. 

 

Não quero me explicar. Não é disso que imagens e poemas precisam, mas apenas de desdobramentos contínuos, imprevisíveis; costuras outras numa troca interminável. Compreendo apenas que nessas suturas algo outro emerge, que não pode ser resumido na soma das heterogeneidades. Andrei Tarkóvski produziu aquela incontornável imagem de fazer cinema como esculpir o tempo, quase uma matéria tangível no filme, com uma demanda ética radical. Aqui, vendo o que podemos fazer, penso também no trabalho necessário de suturar o tempo. Está em jogo um gesto, uma vida, e não será nunca só uma vida, de poeta, de artista visual, mas uma vida como forma da partilha. Dar até o limite do que não se tem: o risco da memória.

 

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Guilherme Gontijo Flores nasceu em Brasília, em 1984. Poeta, tradutor e ensaísta, recebeu os prêmios APCA e Jabuti por sua tradução de A ANATOMIA DA MELANCOLIA, de Robert Burton. É autor, entre outros, de BRASA ENGANOSA (Patuá, 2013) e CARVÃO :: CAPIM (Editora 34, 2018). Pela Todavia, publicou HISTÓRIA DE JOIA (2019) e POTLATCH (2022).


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