Rainha Elizabeth e Príncipe Philip conhecem Lina Bo Bardi (c) Arquivo do Centro de Pesquisa do Masp. Fotógrafo desconhecido

Suas majestades, a rainha Elizabeth II e o povo brasileiro

Por Francesco Perrotta-Bosch

Leia o capítulo do livro LINA: UMA BIOGRAFIA no qual o autor Francesco Perrotta-Bosch fala sobre a abertura do MASP e o encontro da arquiteta com a Rainha Elizabeth II

* trecho do livro Lina: Uma Biografia, de Francesco Perrotta-Bosch 

Honrados com a presença de sua majestade Elizabeth II e de sua alteza real o príncipe Philip, duque de Edimburgo, o prefeito da cidade de São Paulo, a sra. Faria Lima e a Diretoria do Museu de Arte Assis Chateaubriand têm o prazer de convidar [nome do convidado] para a inauguração da nova sede do Museu, a realizar-se no dia 7 de novembro de 1968, às 10:30 horas, na avenida Paulista, 1578. Traje passeio. Pede-se a apresentação deste convite à entrada. 


Em papel e formato de cartão-postal, o texto acima estava impresso no verso de uma foto do novíssimo Museu de Arte de São Paulo. Cento e vinte e sete pessoas receberam o convite que lhes garantia ver de perto a monarca mais famosa do mundo. Elizabeth II desembarcara no Brasil, mais especificamente no aeroporto de Guararapes do Recife, no dia 1º de novembro, acompanhada de uma co-mitiva de quarenta pessoas. A rainha estava a bordo do Vickers vc-10 da Real Força Aérea, personalizado e decorado ao seu gosto com uma sala de jantar e biblioteca. Por sua vez, sua bagagem veio em outra aeronave, um Comet. E seu marido também chegou em um voo distinto, no caso, proveniente da Cidade do México, onde ele acompanhara os Jogos Olímpicos, tendo feito escala em Belém do Pará. A chefe de Estado do Reino Unido ficou por dois dias em São Paulo. Chegou ao aeroporto de Congonhas às 14h45 do dia 6 de novembro. Primeiro a levaram até o parque do Ipiranga e, depois, à cobertura do Edifício Itália. Em seguida foi para o Palácio dos Bandeirantes, onde o casal real se hospedou naquela noite. A sede do governo do estado fora inaugurada três anos antes: quando ficou pronta, já parecia antiquada, ultrapassada, aparentava meio século de existência. A desmesurada edificação de traços em estilo fascista foi projetada por Marcello Piacentini, arquirrival romano de Pietro Maria Bardi (ele se referia ao palácio como “casarão do Morumby”) e professor universitário de Lina Bo. Parecia até perseguição; afinal quis o destino que o antípoda italiano viesse a conceber um imenso projeto na vi-zinhança da Casa de Vidro — de aspecto mais moderno, porém pronto uma década antes. Alheio a críticas arquitetônicas e rixas pessoais, o governador Roberto Costa de Abreu Sodré ofereceu um banquete à rainha. No cardápio servido a 110 convivas estavam vol-au-vent de robalo e camarão, poularde com legumes e, de sobremesa, sorvete e morangos. Fazia um calor de trinta graus no salão estadual, e os convidados escutaram as apresentações musicais de Wilson Simonal, Jair Rodrigues e Elza Soares.

O dia 7 de novembro começou com uma visita ao laboratório da empresa farmacêutica Burroughs Wellcome. Bem cedo na manhã daquela quinta-feira de inauguração do novo prédio do Masp, uma multidão ocupou as calçadas e as pistas de veículos da avenida Paulista, na esperança de ver a personalidade. A rainha atravessou o centro da cidade em carro aberto, sendo acompanhada por populares agitando bandeirinhas Union Jack e gritando “God save the Queen”. Circundado por batedores e viaturas com seguranças, o automóvel passou a trafegar mais lentamente, Elizabeth retribuía o povo com seus acenos de praxe, e a pontualidade britânica foi para as cucuias. A chegada do veículo da monarca, com o governador sentado ao lado no banco de trás, estava marcada para as onze horas da manhã. O atraso foi de vinte minutos.

Quando a rainha Elizabeth II saltou do carro, foi possível ver seu traje: vestido na altura do joelho sobre o qual usava um casaquinho, ambos do mesmo tecido verde, bolsa rosa na mão esquerda — uma combinação dos tradicionais tons da Estação Primeira de Mangueira; luvas, sapatos, chapéu, todos brancos; um broche de ouro com formato estilizado de pássaro preso na al-tura do ombro; o par de brincos e o colar de três voltas eram de pérolas. Uma fila a aguardava para os cumprimentos iniciais. Não estava presente a pessoa que mais se esforçara por aquele momento: Francisco de Assis Chateaubriand falecera em 4 de abril daquele mesmo ano de 1968, não tendo visto a sede de seu museu ficar pronta. Porém, naquela linha de autoridades e notáveis estavam o prefeito Faria Lima e a primeira-dama, um general, um major-brigadeiro e um vice-almirante (a tríade representando o governo em vésperas de decretar o AI-5), o deputado João Calmon, então presidente dos Diários Associados, a diretoria do Masp, na qual se destacava Yolanda Penteado, quatro familiares de Chateaubriand e os dois responsáveis pelo pro-eto do edifício: o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz e, de tailleur e chapéu brancos, a arquiteta Lina Bardi. Após as reverências com a cabeça e  eventuais apertos de mão a quem a alteza real estendeu o braço, o alcaide convidou-a ao pequeno palanque forrado de azul, próximo à calçada, em frente aos convidados brasileiros, à comitiva britânica, aos funcionários do Itamaraty, às autoridades consulares e à imprensa — todos sob o vão livre.

Faria Lima foi o primeiro a discursar, chamando Chatô de “moderno Medici” (a alusão era ao renascentista florentino, não ao ditador tupiniquim), dando as boas-vindas a Elizabeth e convidando-a para o descerramento da bandeira de São Paulo, que escondia a inscrição inaugural. No caso, não era uma placa metálica habitual, mas uma imensa pedra de granito assentada até hoje na entrada do museu, na qual estão gravados os dizeres elaborados por Menotti del Picchia:

Assis Chateaubriand criador de monumentos fundou a 2 de outubro de 1947 o Museu de Arte de São Paulo hoje transferido para este edifício
que traz seu nome. S. M. a Rainha Elizabeth II o inaugurou. 
7 de novembro de 1968
Prefeito de São Paulo
Faria Lima

Seguiram-se os aplausos antes do pronunciamento de quatro minutos da rainha. Dois microfones captaram sua fala, amplificada para todo o público na Paulista. Na língua inglesa, sua majestade declarou:

— É para mim motivo de especial satisfação inaugurar este magnífico Museu de Arte. Sua beleza, simplicidade e a perícia com que foi construído tornando o mais impressionante exemplo de espírito de iniciativa dos paulistas. Sinto-me feliz também em pensar que ele abrigará uma coleção de quadros de um dos mais ativos e generosos embaixadores que passaram pela corte de St. James: o dr. Assis Chateaubriand. Recordo-me ainda de sua extraordinária personalidade e lamento que, nesta hora, ele não se encontre aqui conosco.

Terminada a fala da monarca, Hélio Dias de Moura, em nome da diretoria do museu, agradeceu a presença do casal real. Encerrada a cerimônia para a plateia, Lina e Figueiredo Ferraz aproximaram-se da rainha Elizabeth II e do príncipe Philip para explicar sobre o projeto num trecho do vão livre singela-mente decorado com tapete vermelho sobre os paralelepípedos e arranjos de orquídeas. O prefeito e o governador, com suas respectivas primeiras-damas, também escutaram a explanação de três ou quatro minutos feita pela arquiteta e pelo engenheiro. Foi o último momento em que Lina teve contato direto com a convidada especial. Sua majestade foi conduzida até o elevador, onde só entraram as principais autoridades do Executivo federal (os três militares já citados), estadual e municipal, apesar do limite da capacidade de vinte pessoas.

Subiram até o andar superior, e quem os esperava na porta do elevador era o diretor Pietro Maria Bardi. Ele cumprimentou a rainha e passou a guiá-la pela novíssima pinacoteca de cavaletes de vidro do Masp. A pintura mais próxima do elevador era A sala azul de Trent Park, de Winston Churchill. A tela havia sido arrematada por Chateaubriand em um leilão da Christie’s em junho de 1949, pelo valor de 1300 libras esterlinas, após uma disputa de ofertas travada com o ator americano Robert Montgomery. Elizabeth II foi conquistada, de pronto, com aquela cortesia de dar destaque ao seu primeiro-ministro mais decisivo para a história. O professor Bardi seguiu apresentando obras de conterrâneos da rainha, desde retratos pincelados dois séculos antes por Thomas Gainsbo-rough, passando pela bucólica paisagem com a Catedral de Salisbury pintada por John Constable e pelo buliçoso campo pictórico feito por William Turner para representar o castelo de Caernarvon, até trabalhos daquela década de 1960, de Eduardo Paolozzi e Joe Tilson, jovens britânicos precursores da pop art. P. M. Bardi contou depois que a “rainha ficou contente ao saber que nós, matutos, afinal, estamos ao corrente, como é de nosso dever, do que se passa na Ilha”.

O quadro mais apreciado pela soberana foi O artista — retrato de Marcellin Desboutin, figura um tanto desengonçada ou mesmo maltrapilha pintada por Édouard Manet em 1875. Satisfez-se ao admirar vis-à-vis as esculturas das bailarinas forjadas por Degas e os tantos quadros de Renoir ali suspensos. Diante do Retrato de Marthe Bérard, Elizabeth II perguntou:

— Como foi possível reunir todos esses impressionistas?
— Majestade, foi a ingenuity do embaixador Chateaubriand — comentou Bardi. 

Em seguida, ela se encaminhou até a fachada transparente, perguntou se o parque Siqueira Campos de frondosas árvores fazia parte do museu e observou a multidão que aplaudiu tão logo a viu. Às vésperas, no Jornal do Brasil, aventou-se um suposto perigo de “algum subversivo” atirar na rainha naquele andar envidraçado por todos os lados. O fato é que a equipe de segurança impediu que carros não pertencentes à co-mitiva estacionassem nos quarteirões próximos ao Masp. E só autorizou pouquíssimos convidados a subirem até o segundo pavimento da caixa suspensa do edifício — basicamente os britânicos do séquito da rainha e alguns poucos funcionários do Itamaraty. Tais privilegiados, aliás, tive-ram a oportunidade de escutar piadas do príncipe Philip a respeito dos quadros, que não chegaram a provocar risadas. O diretor do Masp sele-cionou seis artistas para, ao lado de seus trabalhos ali expostos, esperarem a rainha a fim de saudá-la, apresentar brevemente o que haviam pi-tado e responder a perguntas que ela viesse a fazer. Eram eles: Nelson Leirner, Tomie Ohtake, Caciporé Torres, Bernardo Cid, a inglesa residente em São Paulo Sheila Brannigan e Maria Helena Chartuni, que fazia parte do staff do museu e foi amante de Pietro Maria Bardi por mui-tos e muitos anos. Lina não subiu até pavimento superior. O cerimonial foi preestabelecido, minuto a minuto, deixando-a longe do marido du-rante todo o evento.

Ao terminar de ver aquela amostra do acervo, Elizabeth II desceu os ele-vadores, deu adeus às figuras mais proeminentes, entrou numa limusine conversível que a levaria até o aeroporto de Congonhas, com uma breve parada na Escola Britânica, e partiu para Campinas (SP), onde pernoitaria.

Tudo transcorreu a contento dos políticos municipais que bancaram fi-nanceiramente o novo edifício. A alegria era tanta que promoveram, naquela noite, um coquetel no Clube Paulistano para celebrar a bem-sucedida passagem da rainha pela cidade de São Paulo. Entretanto, o Museu de Arte de São Paulo não abriu ao público naquela tarde, no dia seguinte, na semana posterior, nem mesmo nos meses subsequentes. Pietro Maria Bardi assumiu que aquela inauguração era para inglês ver.

As obras do edifício não estavam concluídas. Todos os quadros mostra-dos à rainha foram encaixotados assim que ela saiu, pois havia goteiras no teto da pinacoteca de cavaletes de vidro. O sistema de ar-condicionado não fora instalado. A parte subterrânea à avenida Paulista estava muito longe de ter suas obras concluídas — aliás, quando o Masp foi inaugurado, os andares inferiores do edifício estavam sob a jurisdição exclusiva da prefeitura e, portanto, não faziam parte do museu.

Os dias que antecederam a cerimônia com a rainha foram caóticos. Mais de duas centenas de operários trabalhavam dia e noite para finalizar mini-mamente as dependências por onde sua majestade iria passar. Dona Lina ia todo dia de manhã para o canteiro de obras — às vésperas, conforme todos percebiam ainda faltar muito para concluir, o horário se expandiu. Havia o desafio de deslocar com segurança o valioso acervo da rua Sete de Abril até a nova sede: os quadros eram preciosos, mas difícil mesmo era fa-zer a mudança das pesadas esculturas de mármore.

Se já não fosse complicado o suficiente terminar as obras civis, Yolanda Penteado passou a reivindicar a organização da cerimônia. De fato, havia sido ela a articuladora, junto com o embaixador britânico John Russell, da inclusão da inauguração do Masp na avenida Paulista no roteiro da rainha por São Paulo. Tal sucesso diplomático fez com que se achasse no direito de comandar todos os preparativos. Aí é que os ruídos com os Bardi se multiplicaram. Em 27 de setembro, Yolanda e Pietro brigaram. Ela queria fazer os convites e a administração do museu brecou. Penteado enviou uma mensagem malcriada e o professor Bardi respondeu: “Desejo deixar-lhe bem claro — para o futuro — que não tolero desaforos, pre-potências e inconveniências, pois não sou seu assalariado”. Dias depois, Yolanda sugeriu ao prefeito Faria Lima que presenteasse Elizabeth II com uma pepita de ouro. Quando Bardi foi consultado, ele se disse “completamente incompetente nesse campo”, mas como se tratava da inauguração de um museu, “o presente deveria ser uma obra de arte e não uma produção mineral”. Em 14 de outubro, Yolanda liga para o assistente do museu, Luiz Hossaka, para que ele passasse uma mensagem ao professor Bardi e ao diretor-tesoureiro Edmundo Monteiro (ex-braço direito de Chateaubriand e chefe de facto do Masp naquele momento): além de voltar a reclamar para si a concepção dos convites, madame Penteado exigia ser a responsável pela decoração da recepção no vão livre, queria estar encarregada das “providências de isolamento, com flores do Com. Rinaldi (e também plantas vivas) no térreo”, declarava-se capaz de arrumar um palco, os microfones e os alto-falantes, e, por fim, no momento em que a rainha entrasse no elevador, seu trabalho estaria concluído. Não há registros de resposta de Bardi ou Monteiro. Talvez nunca tenham dado nenhuma satisfação à dama da sociedade paulistana. O fato é que confiaram a dona Lina a decoração para a cerimônia real — e para simular que o edifício estava pronto.

Na semana seguinte à inauguração com a rainha, Lina partiu para Brejo da Madre de Deus, município no sertão de Pernambuco. Ela foi responsável pelos cenários e direção de arte do filme A Compadecida, dirigido por George Jonas, baseado no texto da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Antônio Fagundes fez o Chicó. Armando Bógus foi o João Grilo. Regina Duarte era a Compadecida. Lina decidiu que um circo seria o lugar dos principais eventos daquela encenação cinematográfica. Passou sema-nas trabalhando arduamente no set de filmagens até voltar para São Paulo, em dezembro, com uma grave infecção renal. Ficou de cama até o fim de janeiro. Só depois retomou o acompanhamento das obras civis no Masp, reorganizou com o marido a pinacoteca da coleção permanente e começou a estruturar a programação da instituição.

A plebe entrou no Museu de Arte da avenida Paulista, pela primeira vez, em 7 de abril de 1969, uma segunda-feira, às dezoito horas. Essa nova celebração teve um número de participantes muito mais amplo do que a solenidade com a rainha. No entanto, isso não significa que foi uma festa exclusivamente popular: compareceram muitos senadores, deputados federais, deputados estaduais, autoridades militares, membros do clero, artistas e intelectuais, empresários, membros da high society paulista, em suma, muitos figurões. Quarenta minutos atrasado, o protagonista dessa quarta cerimônia de inauguração do Masp desde sua fundação em 1947 era o prefeito Faria Lima, que, no dia seguinte, passaria sua cadeira municipal para Paulo Salim Maluf. A banda da Guarda Civil Metropolitana executava números musicais para manter o ânimo da plateia durante a demora para o início dos discursos. O periodista do Diário de S. Paulo registrou que a “arquiteta Lina Bo Bardi estava comovidamente silenciosa” durante o evento. Ao contrário do cerimonial com a realeza, também estavam presentes as diretorias completas dos Diários Associados e do Museu de Arte, o que conferiu à ocasião um tom de novo velório a Chatô:

— Quem sonhou aquele sonho, quem se armou em cavaleiro e reuniu os mais bravos capitães para lançar-se à esplêndida aventura de dotar São Paulo de um monumento cultural digno de sua grandeza, quem emprestou a esta iniciativa o tremendo poder de sua inteligência, a força incontestável de seu gênio criador, a coragem quase temerária de sua fé, a espiritualidade quase mística de seu caráter, foi Assis Chateaubriand — pronunciou-se messianicamente Edmundo Monteiro.

 — Encanta-me a perspectiva de que gerações futuras, ao longo dos anos, ao longo dos séculos, hão de passar por este local, hão de olhar, admirar, aprender nos tesouros da arte reunidos por Chateaubriand e nós estaremos desem-penhando o nosso papel: ter dado a São Paulo também esta participação im-portante na cultura — falou de improviso o alcaide-brigadeiro Faria Lima.

Se, publicamente, somente boas lembranças eram ditas a respeito do falecido magnata da mídia brasileira, o que se discutia nos gabinetes da diretoria do Masp é que Chatô não tinha deixado nenhum tostão no caixa do museu. Pelo contrário, legara dívidas, como 31 mil dólares por um quadro do Gauguin. Findas as festividades pela nova sede, o Museu de Arte mal tinha verba para funcionar.

Apesar dos pesares, às dezesseis horas de 21 de junho de 1969, o Masp conseguiu abrir a primeira exposição temporária da nova sede: A Mão do Povo Brasileiro. A mostra organizada por Lina Bo e Pietro Maria Bardi era composta de mais de 3 mil peças de todas as regiões do país. Nas entrevistas concedidas para a imprensa à época, o casal definia os objetos expostos como “uma lição de arte dada por gente humilde que nunca ouviu falar em bienais nem em salões de arte moderna”. Portanto, enquanto no segundo andar do museu estavam obras-primas de todo o mundo em cavaletes de vidro, o primeiro pavimento seria destinado às manifestações populares e autenticamente brasileiras.

Dos objetos autóctones da exposição, parte considerável pertencia ao próprio casal Bardi, que os adquiriu paulatinamente em viagens feitas pelo Brasil ao longo de vinte anos. Muitos itens foram cedidos por amigos colecionadores e antiquários. Entre as instituições públicas, as que mais colaboraram foram o Museu de Artes e Técnicas Populares, que ficava no Parque do Ibirapuera, e o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, com o qual Lina estabelecera relação próxima desde seus anos na Bahia. 

“Não pretendendo esgotar o assunto, nem aspirando o enciclopedismo”,  aquela reunião de produções populares era avessa a categorizações, dizia texto escrito no Masp sob o pseudônimo J. R. H. e republicado na íntegra pelo Diário de S. Paulo. O juízo de valor era igualmente desconsiderado. O que cada indivíduo classificaria como bom ou mau gosto não pautava as escolhas de Lina e Pietro. A autoria também não era parâmetro. Quase tudo de A Mão do Povo Brasileiro era anônimo. Coletaram-se itens feitos no país nos últimos 250 anos, mas a cronologia foi absolutamente dispensada ao dispô-los na sala do Masp. Parecia menos um museu e mais um mercado popular.

Lina montou uns estrados baixos de pinho para pousar os objetos. Uns ni-chos e paredes da mesma madeira foram erguidos para itens que precisavam ser pendurados. Era trabalho de carpinteiro bruto, não de marceneiro refi-nado. Projetados por dona Lina, os expositores pareciam despretensiosos. Estavam ali só para dar apoio à diversidade de coisas que ela mesma buscara, selecionara e para as quais solicitava a atenção do visitante.

Cuias, gamelas, panelas de ferro, funis, colheres de pau, enxadas, ancinhos, celas de cavalo, arcas, cadeados, moedores de café, moedores de pimenta, rodas de ferro e madeira, monjolos, uma rapadeira para ralar mandioca com uma manivela feita de latas de azeite, alambiques de cobre, havia centenas de utensílios de um cotidiano rural que dificilmente con-sideraríamos peças de museu. Por sua vez, os belos adereços não eram requintados, nem continham pedras preciosas, como uma cobra de cipó pintado e colares populares da própria caixa de joias de Lina. Os registros das histórias do sertão estavam nas peças de barro do Mestre Vitalino e nas narrativas de Lampião em literatura de cordel. Expunham-se duas garrafas de aguardente de rótulos Amansa Corno e Amansa Sogra, provenientes de Itaiçaba, Ceará. De mesmo estado nordestino vieram toalhas de renda que não eram feitas de tecido, mas de papel de embrulho, capas de revista, folhas de jornal e pôsteres de anúncios — exemplos perfeitos do que Lina havia intitulado pré-artesanato. Encontrava-se uma cadeira de barbeiro giratória, com pedal para levantar e abaixar o assento, porém de madeira e com mais de cem anos de existência. Sem desequilíbrio de valores e rele-vância, lado a lado estavam o laico e o sacro: um estandarte da procissão de são Cristóvão, oratórios, pias batismais, dois tronos usados na folia de reis, um confessionário de madeira feito no século XVIII, uma imagem de Cristo com braços e pernas articulados que era apresentado na Semana Santa em Sorocaba por mais de dois séculos. Uma linda escultura de são Jorge do século XVIII em madeira policromada e escala real era o primeiro objeto com que se deparava uma pessoa ao entrar na exposição. Além dos registros da fé católica, havia uma Iemanjá e objetos caros a terreiros de candomblé e umbanda. Os festejos populares estavam bem representados com os bonecões de Carnaval Zé Pereira e Maria Angu, um tambor de congada, viola caipira e outros instrumentos, tocheiros de procissões, um boi do bumba meu boi. Dos povos indígenas expuseram-se cocares do Araguaia, um ralador de mandioca dos baniwa, uma urna funerária marajoara. Aliás, havia armas de índios e de homens brancos, como flechas e zarabatanas do rio Negro, espingardas e bacamartes, um revólver do século XIX que fora pescado no fundo do rio Paraguai. Para a fantasia das crianças, havia brin-quedos feitos de latas de óleo, pipas, cataventos, uma miniatura de carrossel, dezenas de bonecas de pano e mamulengos e, por fim, um aviãozinho de ripas de madeira, lâmpadas queimadas e vidros vazios de remédio, com dois bonecos (um sobre cada asa) girando os braços como hélices — o engenhoso item era produto da imaginação de um sertanejo pernambucano que só tinha visto aeronaves passarem distantes no céu. A astúcia suplanta a escassez também no projetor de cinema engendrado com peças velhas de bicicletas e relógios.

Para alguns, A Mão do Povo Brasileiro podia parecer um armazém de quinquilharias. Para os Bardi, era um esforço para registrar a memória cultural do país que para eles, naquele fim dos anos 1960, estava “sofrendo rápida e irreversível desintegração”. Se bem-sucedida, Lina enxergava a exposição como ponto de partida para uma nova narrativa da história da arte no Brasil. A mostra foi memorável para muitos visitantes (até foi remon-tada quatro décadas depois), mas não teve tamanha força transformadora no mais difícil momento da ditadura militar.

Em paralelo à abertura no primeiro andar do museu, também se inaugu-raram instalações de Nelson Leirner sobre os paralelepípedos do vão livre: os “playgrounds” eram peças escultóricas, com as quais as crianças podiam interagir. Também se instalou um carrossel, em que se rodava sentado em um tucano ou uma onça-pintada, muito parecido ao esboçado em um desenho de Lina para o belvedere. Entretanto, o carrossel em questão foi incumbido a Chartuni e Carlos Blanc.

Com o correr dos meses e anos, Lina passou a ir menos ao Masp — quase nunca, na verdade. Para a sequência de A Mão do Povo Brasileiro, ela imaginara exposições a respeito do barroco nacional e do urbanismo, “numa forma que qualquer pessoa possa entender, sem dados complicados, nem estatísticas”. No entanto, nenhuma foi em frente sob a sua batuta. A falta de verba do museu e o inquérito militar justificam em parte esse afastamento voluntário. Raríssimos foram os períodos de idas diárias de Lina Bardi àquela sede da Paulista — a exposição Repassos, de Edmar de Almeida, em 1975, foi uma exceção. Ela trabalhava na própria casa e, anos depois, no Sesc Pompeia. O Masp era território do marido Pietro.

Aliás, ele anunciava nos jornais que o “hall” do museu — o que hoje conhecemos como vão livre — seria para as crianças “fazerem o que bem entenderem”. Pietro Maria Bardi complementava que, “quando se cansarem de brincar no saguão, é bem possível que elas acabem subindo ao se-gundo andar, onde está a pinacoteca, e desde cedo entrem em contato com a arte. Esse sistema é muito usado em países da Europa, especialmente na Holanda”. Todavia, entre o discurso e a prática havia certa distância. E a pequena Alice Amaral de Souza, moradora do edifício Nações Unidas na esquina da avenida Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio, escreveu uma cartinha à mão, tirando satisfações por não ter sido autorizada sua subida até o andar dos quadros:

Seu Diretor, o porquê que criança menor de dez anos não pode entrar. Eu não sei e quero saber. Alice.

Bardi ficou comovido com a manifestação da menina. Aparentemente, havia certo receio de que os cavaletes de vidro não fossem seguros para crianças. Em carta, o diretor do Masp gentilmente respondeu à pequena Alice:

Cara Alice,

Recebi a sua carta.

As crianças de um modo geral não podem entrar na Pinacoteca por ra-zões de segurança delas mesmas. Principalmente as menores de dez anos.

Entretanto quando são acompanhadas, e se os pais forem bem aten-tos, deixamos entrar e visitar. Temos muito cuidado com as crianças pois se elas andarem livremente, passam a correr pelo salão e daí um acidente nada custa.

A sua cartinha deu-me a sugestão de orientar o nosso ascensorista, os nossos guardas e os contínuos, de uma atenção especial aos visitan-tes mirins.

Venha ao Museu e me procure pois gostaria muito de conversar com você.

Um abraço,
P. M. Bardi Diretor


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