QUASE NORMAL: Natal

Por Zeca Camargo

 

Em 2020, Zeca Camargo estreou na ficção ao lançar, pela Todavia, Quase normal – Contos. Os 20 textos do livro são escritos com leveza e tratam de questões bastante atuais sob a ótica do chamado “novo normal”: o mundo do trabalho, a vida profissional e doméstica entrelaçadas, as hoje quase infinitas reuniões por vídeo. São histórias que abrem uma janela a um só tempo divertida e delicada sobre estes tempos que estamos vivendo. 

Em Natal, conto inédito, o autor imagina situações constrangedoras (mas não impossíveis) enfrentadas por Marilena em um amigo secreto da firma realizado pelo Google Meet. Acompanhamos também o desfecho tragicômico de seu controverso Natal em família. Abaixo, leia o texto na íntegra e assista ao autor dividindo a leitura do conto com Deborah Secco, Tainá Muller, Preta Gil, Marisa Orth e Mel Lisboa.

 

 

 

QUASE NORMAL: NATAL

“O meu amigo secreto tem olhos bem amendoados, sobrancelhas grossas, e parece que tá sempre sorrindo atrás daquela máscara!”

Marilena pensou logo no Matheus, mas, antes de falar, já tinha umas três pessoas gritando o nome dele ao mesmo tempo e o próprio Google Meet, que jamais poderia imaginar que foi desenvolvido para esse tipo de “reunião”, estava perdido sem saber quem era dono da palavra. 

De todos os encontros virtuais que inventaram nessa quarentena, difícil imaginar um mais constrangedor do que esse amigo secreto virtual. Ou oculto, como algumas pessoas do escritório do Rio insistem em chamar. Não só pelo fato de a brincadeira ser constrangedora desde a sua origem, mas pelo fato de as pessoas insistirem nesse ritual de humilhação numa época como esta dá um verniz ainda mais cruel à cerimônia.

“A minha amiga secreta já pagou o maior mico num Zoom de treinamento com o namorado passando atrás da câmera quando ele tinha acabado de acordar.”

Sandra foi cruel. Talvez ela tenha apenas tentado ser engraçada, mas as únicas risadas que conseguiu eram nervosas. Se percebeu o desconforto, ignorou. Talvez Sandra tenha achado que sua pista não estava muito clara, já que tanta gente pagava um mico assim, com alguém entrando na imagem “de surpresa”. E então acrescentou:

“Ah! E ele não dorme de pijama não. Aliás, ele não dorme com nada.”

Era a Ellen, coitada, que tentando evitar um clima mais pesado, saiu logo anunciando quem ela tinha sorteado!

“A minha amiga secreta já fez três testes, dois PCR e um sorológico. Ah! E ela não pode ver chocolate.”

Márcia, claro. Marilena se lembrou de quando ela mandou no grupo de zap do andar onde trabalhavam uma mensagem dizendo que estava com uns “sintomas meio esquisitos” e o Marco Túlio, do RH, mandou no mesmo dia um pessoal do laboratório ir até a casa dela, com swab e tudo. Todo mundo começou a postar fotos com aquele cotonetão enfiado no nariz, rindo e ao mesmo tempo com medo da dor ao ter um daqueles narina adentro. Marilena já tinha visto até legenda de Instagram com gente dizendo que dava tontura e que o olho havia sangrado. O olho! Mas a Márcia contou que só deu uma vontade de espirrar. E que o segundo foi mais chato que o primeiro. Como a Márcia tinha aberto a rodada e aquela chatice já estava rolando havia quase meia hora, antes de ficar aquela coisa constrangedora Marilena disse:

“Minha vez! O meu amigo secreto pediu umas três vezes pra trabalhar de home office, mas o Marco Túlio não autorizou.”

Marilena sabia que essa dica não era óbvia porque pelo menos a metade do escritório pediu para trabalhar “na remota”, logo que começaram a falar de “segunda onda”, mas quem disse que a empresa liberou? Agora está todo mundo com medo de passar o Natal com Covid.

“Ele também perdeu duas pessoas próximas desde março.”

Uma dica mais específica, mas que também não ajudava muito, porque quase todo mundo que trabalha com Marilena tinha uma história de um parente que morreu em 2020. Era engraçado ver como as expressões de choque foram mudando à medida que essas notícias iam se repetindo. Foi ficando tudo igual e a reação de todos foi deixando de ser forte. Hoje, quando alguém diz que morreu uma avó, até mesmo um pai, mãe, irmão, o máximo que se ouve é um “jura?”. Ou o silêncio. Igual agora nos rostos que olhavam para Marilena.

“Tá bom, eu sei que eu não tô facilitando. Então vamos lá. O meu amigo secreto resolveu raspar careca esse ano com medo de pegar Covid!”

“Fabiano! Fabiano!”

As risadas e a gritaria se misturavam num volume tão alto que ninguém escutou sua descrição do presente: um par de meias com a sola emborrachada, que podia usar para pegar o delivery na portaria do prédio e depois era só passar um álcool em gel na volta pro apartamento e pronto! Tudo limpo, tudo desinfetado!

O lado ruim de começar uma nova rodada de amigo secreto é que a pessoa tem que esperar fechar um círculo para receber o presente. Marilena estava louca para desconectar, mas sem presente não iria embora. Mesmo sabendo que todos só iriam recebê-lo depois do recesso de fim de ano e que os pacotes ficariam trancados por três semanas no almoxarifado.

Então Marilena seguiu conectada, vendo Fabiano dar uma escova anti-Covid para Denise – “como alguém tem coragem de comprar isso?” –, ainda pensou. Viu a Denise dar um porta CD (que, pensou, ela deve ter ganhado de um amigo secreto em 2003) para Bianca Flávia. A Bianca Flávia dar um livro de receitas de smoothies para reforçar a imunidade para a Marília. A Marília dar um par de luvas de couro “amaciado” (usadas?) para o Diones. O Diones dar uma camiseta escrito “Tosse seca, Dor de Garganta, Sem Olfato & Sem Paladar” (Marilena torceu a cara para o mau gosto) para o Lucas. O Lucas dar uma desculpa para a Ana Paula, já que não teve tempo de comprar nada porque está cuidando da mãe que tem 78 anos. A Ana Paula dar uma máscara de uma loja de grife para o Iago, mas com cara de arrependida por ter gastado R$ 120 com um presente e não ter ganhado nada. E o Iago dar, finalmente para ela, Marilena, um voucher para comer no Outback do shopping perto do trabalho, mas que só vale para quando todo mundo estiver vacinado.

“Eu começo agora! O meu amigo secreto é tão novinho que vai ser o último da fila pra receber a vacina...”

Ela logo sacou que Alice, que acabava de abrir uma nova rodada, só poderia estar falando de um dos estagiários: Felipe, Andrezzo ou o Johnatas. Enquanto todo mundo tentava adivinhar para qual dos três iria o presente seguinte, Marilena imaginou qual seria seu lugar nessa mesma fila. Ano que vem, ela já encosta nos 40, será que isso lhe daria alguma prioridade para a vacina? “Talvez em 2022, né?”, concluiu. Bom, certamente antes do Johnatas, que ganhou o presente mais bizarro da brincadeira: uma caixa com 365 máscaras descartáveis, cada uma gravada com um dia do ano. A justificativa da Alice:

“Já que ele vai demorar pra tomar a Coronavac, melhor ele se garantir em 2021, né?”

Uma pra cada dia? Marilena já se contentava com as três que reveza sempre antes de sair. Aliás, hora de escolher a de hoje. Já estava em cima da hora para uma outra festa de Natal – essa, com gente de verdade. Era sua chance de dar um tempo da vida virtual. Hora de ir para o Jantar das Primas!

Essa é uma tradição da família de Marilena. Começou só com as primas mesmo, todas conectadas pela bisavó, que teve onze filhos. Quando vieram os netos e depois os bisnetos, todo mundo já estava meio distante e a Maria Tereza, que todos chamam até hoje de Tidinha, resolveu reunir umas primas mais próximas para não passar o Natal sozinha. Era menos um jantar do que uma oportunidade de encontrar quem não se viu o ano todo, alguns dias antes de a loucura das festividades “pesadas” começar. Deu tão certo que no ano seguinte mais primas quiseram ir. Depois mais. Depois os primos. Hoje a reunião é uma bagunça e ninguém nunca sabe quem vai exatamente. E, pensou Marilena, em 2020, sobretudo, esses cuidados com aglomeração devem ter afastado muita gente.

Ela mesma estava um pouco preocupada, mas como o encontro seria na casa da Antonella (cada ano é num lugar diferente) e ela mora numa pequena mansão com um jardim enorme, todo mundo ficaria bem espalhado e ela afastou a ideia de que isso seria um problema. Dez meses depois daquele pânico inicial, Marilena já estava um pouco mais relaxada. Mesmo assim, ela não dispensava a máscara, por exemplo. Já tinha passado a fase em que Marilena era “a louca do álcool gel” e lavava tudo que chegasse do supermercado na sua casa. Mas da máscara ela fazia questão. Não precisava ser mais aquela N95 – nossa, como ela sofria com esse modelo! Parecia que o ar simplesmente não chegava até seus pulmões e, fora o fato de ela ter se dado conta de quanto seu bafo ao longo do dia estava longe de ter um aroma de menta, seu rosto sempre ficava marcado. Agora ela tem as suas três de sempre, feitas à mão pela mãe de uma amiga, com panos bem diferentes, e se essas ficam com cheiro muito forte antes de serem lavadas, ela usa então aquelas de hospital, azulzinhas, mas bem mais folgadas.

Marilena escolheu para o jantar uma com desenho meio geométrico. Sua “coleção” de máscaras fica atrás da porta de entrada, para não esquecer de usar na rua. Mesmo assim, houve vezes em que Marilena entrou no Uber e passou pelo constrangimento de ouvir o motorista chamar sua atenção porque ela estava sem máscara. Porém não desta vez.

Vlad, seu condutor no trajeto, informou que iria levar 40 minutos até o endereço, jogando a culpa no trânsito das vésperas de Natal. Marilena nem se incomodou. Estava um pouco atrasada para o jantar, mas resolveu se distrair com as postagens da turma do amigo secreto virtual, sem deixar de reparar que seu rosto não saiu bem em nenhuma delas. “Que ideia, tirar prints de uma tela sem avisar as pessoas envolvidas”, lamentou. 

O Uber chegou enfim ao local do jantar e Marilena foi recebida na porta por Vitória, a filha mais velha da Antonella, sem máscara. Imediatamente ela se lembrou de ter perguntado para a anfitriã, quando recebeu o convite, como estava a situação na sua casa e da resposta que recebeu tentando tranquilizar sua aflição: “Aqui em casa estão todos bem, todo mundo compartilhando tudo, você vai encontrar um clima ótimo”.

De fato, o sorriso no rosto de Vitória era bastante acolhedor, se não um pouco sinistro. Há quanto tempo ninguém vê pessoas estampando sorrisos escancarados a não ser em reprises de novelas? Puxando seu braço, ela interrompeu seu pensamento dizendo, num tom ao mesmo tempo simpático e reprovador, que Marilena era uma das últimas a chegar. 

Logo na entrada, procurou em vão um frasco de álcool em gel, já esperando encontrar um daqueles mais perfumados e meio oleosos que as pessoas adoram usar para passar uma ideia estúpida de sofisticação. Ouviu seu nome anunciado para boa parte da família e, numa conta rápida, calculou, entre os convidados dentro da sala e no jardim, umas 50 pessoas, talvez um pouco mais. Um número preocupante sem dúvida, mas que a deixou ainda mais tensa quando começou a perceber que ninguém estava usando máscara.

“Fica à vontade”, disse Vitória a abandonando perto da mesa de jantar cheia de salgadinhos. Marilena deu um oi geral, mas era difícil competir pela atenção daquela parentada com as bolinhas de queijo, mini quibes, coxinhas de galinha e o inevitável patê com torradas e geleia de frutas vermelhas. Todos conversavam próximos uns dos outros como se o vírus fosse um convidado que tivesse dado a certeza de que não iria à festa. E ainda experimentavam os petiscos que todo mundo levava junto ao peito, como se a simples transposição deles, das bandejas da mesa para os pratinhos que eles carregavam nas mãos, pudesse ter alterado o sabor de ordinário para o de uma iguaria. Não, ninguém usava luvas. E a contagem de máscaras seguia teimosamente no zero.

Marilena saiu para o jardim por pura aflição de imaginar que o ar do interior estivesse infectado – uma questão que não parecia passar pela cabeça de mais ninguém. Todos eram só risadas, ou ainda, gargalhadas, como se não estivessem fechando um dos anos mais terríveis de suas vidas. Ela viu sua tia Dinorá cobrar dos seus dois netos, Clarisse e Cassiano, um beijo na bochecha. O Telmo, o Vander e o Dimitri improvisando um karaokê sem música, já um pouco bêbados e sem saber a letra de “Como uma onda”. Uma roda de crianças estava na varanda, todas entretidas com um monte de slime que trocavam sem cerimônia entre si. E pelo menos duas primas adolescentes aproveitavam a reunião familiar para apresentar seus novos namorados, que, pelo furor dos beijos, elas pareciam ter conhecido há menos de 48 horas. Marilena descobriu que seu cunhado e sua irmã estavam na festa pela altura da tosse deles, que ela ouvia lá do fundo do jardim. E não demorou a perceber que eles não eram os únicos que tossiam. Salomão, Clarinha, Chico, Manuela, Tamara e mais duas primas de quem ela não lembrava o nome também colocavam o pulmão para fora, numa cacofonia que às vezes parecia mais alta que a música ambiente.

Praticamente hipnotizada pelo que estava vendo, Marilena foi despertada desse transe pela própria Antonella, que a recebeu com um abraço e dois beijos.

“Pensei que você não viesse, mas que bom que você chegou!”

“Eu não sei se deveria ter vindo, Antonella.”

“Imagine, estão todos felizes porque você está aqui, olha o sorriso de todo mundo pra você.”

“Mas esse é o problema. Eu não devia estar vendo esses sorrisos.”

“Como assim?”

“Como assim, Antonella? Ninguém tá de máscara, Antonella! Só eu! Só eu!"

“Deixa de bobagem! Ninguém aqui está usando máscara porque está todo mundo positivo! Viu como você tá se preocupando à toa? Agora vem comigo que eu vou mandar servir o tender que eu sei que você adora!” 



Uma das principais personalidades do jornalismo cultural e da TV brasileira, Zeca Camargo foi correspondente da Folha de S.Paulo em Nova York, apresentador da MTV, repórter do Fantástico. É autor de diversos livros de não ficção, como ELZA e DE A-HA A U2.


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