O professor aloprado
O humor transcendente de LUCKY JIM e seu diálogo com a tradição de comediantes clássicos do cinema
Acaba de ser lançado LUCKY JIM, o romance de estreia (1954) do célebre autor (poeta, romancista, crítico literário, professor etc.) inglês Kingsley Amis (1922-1995) – pai do ensaísta e romancista Martin Amis. Em brilhante ensaio crítico que integra o posfácio, Christopher Hitchens (1949-2011), ele mesmo amigo pessoal da família Amis, define perfeitamente LUCKY JIM: a síntese das conquistas cômicas de P.G. Wodehouse e Evelyn Waugh, ou, nas palavras de Hitchens, uma conjunção única de “inocência e experiência”.
LUCKY JIM integra um dos primeiros exemplos daquilo que a crítica literária convencionou chamar de campus novel: um subgênero literário no qual a maior parte da ação (ou mesmo a íntegra dela) se desenrola em um ambiente universitário. Na maior parte do tempo são evidenciadas as inúmeras liturgias acadêmicas, regras não-escritas, convenções e hierarquias (evidentes e oblíquas), gatilhos poderosos que, quando acionados, são capazes de trazer à tona aquilo que há de mais mesquinho, medíocre, servil e patético na natureza humana.
Jim Dixon, o protagonista, é um professor de História, mais especificamente um medievalista – ainda que talvez a contragosto – em uma vetusta universidade inglesa. Seu problema mais imediato, no início do livro, é conseguir o status de membro permanente do departamento, tendo em vista que seu início profissional fora pautado por gafes e gestos desastrados de toda a sorte, dignos de um personagem de Buster Keaton ou do Jerry Lewis dos anos 1950 e 1960. Isso fica claro, por exemplo, no gosto anárquico de Dixon por caretas (ele tem um vasto repertório delas: a careta do macaco, a do camponês louco, a do esquimó, a do invasor marciano, a do marinheiro indiano, a da “vida sexual na Roma Antiga” etc. etc.), mas igualmente nos incidentes envolvendo excessos alcoólicos: como quando, por exemplo, ele acidentalmente incendeia o lençol no quarto onde está hospedado ou quando profere uma palestra bêbado e começa a ler suas notas imitando as vozes e maneirismos de seu chefe de departamento e até mesmo do Reitor da universidade em que leciona. A propósito, a exemplo dos personagens cômicos de Keaton, Kingsley Amis descreve Jim Dixon com tamanha habilidade e capacidade imagética que logo nos fica claro que sua graça advém não apenas de falas espirituosas e certeiras, mas igualmente de um humor físico, na tradição dos comediantes clássicos do cinema do início do século XX, egressos da escola do vaudeville: não apenas Keaton, mas evidentemente Chaplin, o Gordo e o Magro, os Irmãos Marx e até, posteriormente, alguém como Jacques Tati. O fato de que Kingsley Amis tenha conseguido reproduzir esse tipo muito específico de humor picaresco em seu romance de estreia só atesta o seu grau de domínio precoce do engenho literário.
Com relação à trama principal, compreendemos que para conseguir a permanência no departamento, Dixon (como é chamado ao longo do romance) precisará cortejar a simpatia do Professor Welch: um intelectual burocrata cuja inaptidão para as atividades mais mundanas do convívio social rivaliza apenas com o seu grau desmedido de afetação e esnobismo cultural.
A primeira cena descrita no livro é um diálogo travado entre Welch e Dixon no qual observamos o primeiro discorrer tediosamente acerca de uma crítica cultural equivocada feita por jornalistas ao cobrirem um determinado recital. No lugar de “flauta e piano” haviam se referido a “flauta doce e piano”, o que, para o grau de preciosismo semântico de Welch, equivaleria a um sintoma incontestável da presença das hordas bárbaras nos portões da cidade e da falência da Civilização Ocidental tal qual a conhecíamos.
Toda a galeria de personagens principais apresentada em LUCKY JIM é a um só tempo excêntrica, engraçada, emocionalmente profunda e complexa: Margaret Peel, uma espécie de “namorada” de Dixon, depressiva e manipuladora; Bertrand Welch, o filho do Professor Welch, um pintor com afetações artsy tão ou mais insuportáveis que as do pai; e Christine Callaghan, a namorada londrina de Bertrand de senso de humor afiado e capacidade de observação peculiar.
Muito embora LUCKY JIM tenha sido um romance publicado originalmente em 1954, o seu tipo de humor, a qualidade dos diálogos e a já mencionada galeria de personagens (composta por excêntricos, outsiders e pessoas psicologicamente profundas) pode ressoar em uma audiência jovem e millennial, sobretudo levando-se em consideração as interseções entre seu universo estético e aqueles construídos no cinema por Wes Anderson, por exemplo, em Os Excêntricos Tenenbaums ou, mais ainda, em Rushmore, uma campus novel filmada (ainda que se trate de uma elementary school, é verdade).
LUCKY JIM se insere em uma longeva tradição literária de sátiras sociais britânicas (que vai de Swift, passa por Dickens e chega em Orwell e Waugh, para citar alguns) e descreve o ambiente intelectual e universitário inglês com suas particularidades e maneirismos de classe. Aliás, mais do que isso: LUCKY JIM é um ensaio sobre como as afetações de cosmopolitismo e esnobismo são invariavelmente consequência direta da velha conjunção de provincianismo cultural, filistinismo e insegurança. Mas, isso tudo à parte, LUCKY JIM deveria ser lido porque é admiravelmente bem escrito, excepcionalmente belo, de algum modo terno (ainda que malicioso aqui e acolá) e engraçado pra burro.
Gabriel Trigueiro é Doutor pelo Programa de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ).