O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO: carta do tradutor
Dê uma espiada nos bastidores da produção da obra de Salinger
O texto a seguir é uma carta – pra lá de simpática e elucidativa – que Caetano W. Galindo, o tradutor de O apanhador no campo de centeio, redigiu para Marcia Copola, encarregada de preparar o texto da nossa edição.
Na adorável cartinha, Galindo elenca uma série de cuidados pré-operatórios para o trabalho da Marcia, pois cabe à preparação uma miríade de tarefas: conferir se a tradução "bate" com o original, padronizar o texto de acordo com as normas da editora, corrigir erros ortográficos e gramaticais, assegurar a qualidade do texto em língua portuguesa etc. Ou seja: verificar os aspectos estruturais e formais do texto, garantindo que a obra esteja o mais próximo das intenções originais do autor. Dá uma trabalheira danada? Dá. Mas no fim é uma delícia receber um texto que soa inteirinho em português brasileiro, preservando, no entanto, o tom, a visão de mundo e o talento do escritor.
Por se tratar de um texto cheio de peculiaridades, expressões de época e todo um ritmo próprio, que influencia escritores até os dias de hoje, O apanhador no campo de centeio merece atenção redobrada durante todas as fases de sua produção editorial. É um privilégio espiar, nem que seja um pouquinho, o trabalho desses grandes profissionais – entre os melhores de seus respectivos ofícios –, que fazem de tudo para tornar a sua leitura de Salinger uma experiência definitiva.
Abusada carta à amabilíssima e imarcescível preparadora
Entonces,
tens pano pra manga aqui, hein!?
:)
Seguinte. Vai ter o de sempre, das minhas asnices e burreiras, previsíveis e imprevistas. E como sempre eu conto com você pra me salvar, a mim e aos leitores pobrezinhos, dessa tapadura generalizada.
Muito obrigado.
De verdade.
Mas… tem coisas mais.
Mais… tem coisas más.
E atípicas.
(....) vou dividir a minha “bula” em três partes.
1. A coisa toda tem que ser oral(izável). Daí eu ter até solecismado uns pronomes retos como objeto e tal. Eu fiz uma última revisão (a quarta!) inteira em voz alta, pra garantir que o texto me soasse (literalmente) verdadeiro. De novo, isso custou desvios de “elegância” e, acima de tudo, de “norma culta”.
(Unrelated, but… eu sou “do sul”, e a minha oralidade, pasme, é “do sul”…! Isso acaba transparecendo aqui. Claro que eu sei que a orelha transparanapanemiana há de se esquisitar com certas escolhas. O uso do possessivo de segunda junto com você. A oscilação de segunda e terceira nos imperativos, mesmo que um do lado do outro, às vezes.
Veja lá.
Tentei manter [baseado até no fato de que, veja abaixo, o Nelson Rodrigues usava tu adoidado] uma certa distinção de “formalidade”, com teu e tua aparecendo mais entre os meninos. Mas me diga o que acha.)
2. A diacronia. O livro tem quase três quartos de século (!!!!!!!…. a primeira versão começou a ser publicada em capítulos ainda 1945). De início eu cheguei a brincar com a ideia de produzir um pastiche efetivo do português dos anos 50 no Brasil. Procurei revistas de humor da época (todas digitalizadas hoje), e acima de tudo li muito a prosa do Nelson Rodrigues, aquele DEUS da oralidade. Porém (ah, porém…) a coisa se revelou insustentável. Ia ser “virtuosístico” demais, sabe como? Ia chamar atenção demasiada pra superfície. Imagina alguém declarando “não gosto de chiquê”, ou um cara descrevendo uma mulher (“uma carinha”), como “um rabinho de sonho”…. ou alguém desgostoso com uma situação dizendo “Essa é pau!”.
Pra começo de conversa, o padrão urbano do NR incluía uso sistemático de pronome “tu”, e de concordância plena de segunda pessoa no verbo…
Logo… não rolou.
Mas, ao mesmo tempo, não tem como deixar o Holden soando como um adolescente século 21.
Então a ideia foi uma abordagem múltipla. Eu usei, sim, certas ideias lexicais (especialmente) lá do NR, usei gírias datadas, mas não me ative unicamente à década de 50. Tem aí certas palavras mais 60, uma ou outra 70 etc… O projeto seria deixar o Holden com uma vaga, mas definitiva, cara de “velhinho” linguisticamente, especialmente se a gente lembrar que uma parcela do público potencial do livro terá nascido dos anos 90 pra cá!!
3. Estrutura “musical”. Meio que todo mundo, quando fala do livro, lembra da recorrência de dois-três termos (phony, lousy, madman…). Só que à medida que as revisões iam se sucedendo, eu fui me dando conta de que o livro inteiro é amarrado por uma série bem intricada de recorrências. Fiz uma dessas leituras só com essa finalidade. Acabei chegando a uma lista de mais de sessenta itens cuja tradução deveria ser regularmente a mesma. (Essa lista vai aí junto, pra facilitar o teu trabalho.) Alguns desses itens ocorrem duas vezes (nosy, por exemplo), outros aparecem dezenas de vezes, e em alguns casos a gente roça nas 200 ocorrências. Nem sempre eu pude manter UMA mesma tradução pra cada termo. Há certas divergências e certas convergências. Mas eu diria que no geral a “fidelidade” ao princípio da reprodução dessa rede deveria estar beirando os 90%…?
E veja bem que nem sempre é só questão de repetição por repetição.
O caso de “certamente”, por exemplo, acrescenta uma camada de ironia, porque quando o Holden aponta meio sarcasticamente o costume de um amigo de usar a palavra, o leitor se dá conta de que ele mesmo, Holden, é tão viciado nela quanto.
(...) Outra dessas ressonâncias assombrantes é a de “go around”… que ele usa no livro todo pra falar de “sair com”, no sentido de “dar uns malhos”… algo menos que “namorar” e mais que “ser amigo”… na minha geração se falava “sair com” mesmo. (...) Pode ser pervertice minha, mas eu vi ali um eco estranho, perturbador da cena final, no carrossel… E, de novo, né? É tradução, então interessa pouco se a minha percepção É correta. Mas interessa muito o fato de que eu PUDE chegar a ela no original. Assim, me gustaria que os nossos leitores também pudessem perceber esse eco… se…….
Logo, voltei tudo e escolhi “dar uma voltas”.
Enfim.
Deu um trabalho da porra acertar essas repetições todas. (E ainda arrisca ter umas bizarrias devidas a algum recorta-e-cola malsucedido…) Te peço pra me ajudar onde eu comi bola e, também, pra cuidar MUITO com alterações que forem quebrar a corrente. Se for trocar um “demente”, por exemplo, tem que trocar TODOS, e tem que ser por alguma palavra que não apareça em nenhuma outra situação no livro. Tem que ser por uma palavra que apareça apenas nas dezesseis situações em que o original tem madman.
Why?
Because we can!!
:)
Abraço grande daqui.
Muito bom trabalho e, por favor, não hesitemos (exitemos!). Pode gritar no email. Ou, até (porque mais eficiente), no zap.
(Não estranhe a imagem do Papai Noel no zap. Primeiro, não é uma foto real dele, tá? Segundo, é porque eu sou o Papai Noel do grupo de whatsapp da escolinha do meu sobrinho… e tive que tirar a minha imagem pras crianças não me reconhecerem quando eu mando os meus áudios!)
cwg
Caetano W. Galindo é tradutor, escritor e professor de linguística na Universidade Federal do Paraná. Verteu para o português obras de nomes como James Joyce, David Foster Wallace, Paul Auster, Alice Munro, e a nossa edição de O apanhador no campo de centeio. Lançamento em junho e já em pré-venda aqui no site.