MIL SÓIS: a poesia de Primo Levi

Leia trechos da apresentação de Maurício Santana Dias, organizador e tradutor da antologia poética do italiano

Há exatos 100 anos, em 31 de julho de 1919, nascia em Turim, Itália, um dos maiores escritores do século XX: Primo Levi. Sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, Levi converteu os horrores vistos e experimentados na temporada no inferno nazista em um dos mais poderosos documentos sobre a aniquilação do ser humano: É isto um homem? (1947). Conhecido pelos leitores, sobretudo, por obras como A trégua, A tabela periódica e Os afogados e os sobreviventes, o italiano escreveu também versos— uma poesia forte, bissexta, feita em períodos fervorosos de criatividade.

Faceta menos conhecida de sua obra, a lírica de Primo Levi atravessou diversas fases. Em todas, contudo, temas como a sobrevivência em meio às catástrofes da história, a desumanização e a força da memória — a necessidade de jamais esquecer os horrores vistos— se unem a um registro mais delicado. Agora, o leitor brasileiro poderá conhecer pela primeira vez a poesia de Primo Levi com MIL SÓIS: POEMAS ESCOLHIDOS, antologia bilíngue traduzida e organizada por Maurício Santana Dias. Leia abaixo trechos da apresentação de Dias:

 

A poesia de um sobrevivente

por Maurício Santana Dias 

I

Para a grande maioria dos leitores — inclusive dentro da própria Itália — Primo Levi (1919-1987) é, sobretudo, o prosador cristalino e rigoroso que emergiu do pós-guerra em uma série de livros que ajudaram a fixar um novo gênero: o testemunho literário do horror. No seu caso particular, os onze meses em que o jovem químico e partisan turinês permaneceu no campo de concentração de Auschwitz forneceram o material (histórico, pessoal e inquiridor) para textos como É isto um homem? (1947) e A trégua (1963). Esses dois livros, escritos num estilo descarnado, antissentimental e mesmo assim profundamente tocantes graças à inteligência compassiva do autor, que não se furta a buscar o elemento humano mesmo em meio à mais profunda e aterrorizante reificação produzida em massa pelos nazistas, estabeleceram o seu nome mundo afora. Mais do que isso, fizeram da literatura de Levi (que ganharia volume e relevância ao longo das décadas com a publicação de romances, contos e ensaios) um dos raros monumentos literários do século xx que conseguiram aliar refinamento estético a uma intensa preocupação pelo sofrimento dos indivíduos mergulhados nos pesadelos da História. 

O primeiro texto publicado de Primo Levi, contudo, foi um poema. “Buna Lager” apareceu em junho de 1946 em L’Amico del Popolo [O Amigo do Povo] semanário comunista editado pelo seu amigo Silvio Ortona. Esse periódico teria papel fundamental no início da carreira de Levi: foi nele que, nove meses depois da publicação do primeiro poema, o autor iria trazer a lume cinco partes do texto que originalmente formaria É isto um homem?. Nesses primeiros anos imediatamente após a experiência em Auschwitz e às vésperas de estrear na prosa, Primo Levi escreveu uma dezena de poemas. Uma produção errática e sem método, como confessaria mais tarde. E realmente são bastante distintos, no tom altissonante e na voz às vezes estridente, da prosa do autor, que frequentemente se recusa a maiores derramamentos. 

Levi continuaria a escrever poemas, ainda que de maneira pouco frequente. Entre os anos 1950 e 1970 publicaria alguns deles em revistas literárias de prestígio, como a influente Botteghe Oscure [Oficinas Escuras], cujo editor-chefe era nada menos que Giorgio Bassani, outro prosador italiano de origem judaica que também incursionaria pela poesia. No final de 1970, Levi faz publicar apenas trezentos exemplares de um fino volume com sua poesia até então — onde não constava em parte alguma título da obra ou nome do autor. O livro anônimo, com capa em ordinário papel-cartão, abrigava 23 poemas (dezessete deles inéditos) cuja característica autoral era a datação dos textos e a ordem cronológica. Uma espécie de diário íntimo em versos.

(....)

II

É preciso distinguir entre a poesia e a prosa. Sou um poeta bissexto: no fim das contas, escrevi pouco mais de um poema por ano em minha vida, embora haja períodos em que me venha espontaneamente escrever em versos. Mas se trata de uma atividade que não tem nada a ver com nenhuma outra atividade mental que eu conheça. É algo completamente diferente: é como um cogumelo que cresce numa noite, acorda-se de manhã com uma poesia na mente, ou pelo menos com seu núcleo. Depois é um trabalho de longas variantes e correções contínuas: e o computador é um instrumento perfeito para isso, para a tristeza de futuros filólogos que não acharão os manuscritos com as sucessivas aproximações.

Poesia assumidamente bissexta, escrita em repelões de criatividade em meio à produção consistente da obra em prosa, muito mais difundida mundo afora, a lírica de Primo Levi atravessou diversas fases desde a publicação do primeiro poema. Fases que não se anulam nem se sobrepõem umas às outras, que não possuem um caráter excludente ou evolutivo entre si, mas que talvez sejam mais bem explicadas pela imagem de uma espécie de lírica modular. Os principais temas e motivos de sua poesia parecem peças intercambiáveis que, ao longo da vida, o autor teve a consciência de mudar de posição, de rearranjá-las, de experimentar — à medida que eventos privados e históricos pareciam romper os períodos de inação poética.

Assim, os poemas dos anos 1940, cuja datação — ao longo de diversos meses de 1946 —parece explicitar um processo de restauração humana no antigo prisioneiro do Lager, têm algo de um hinário sombrio em torno de temas como a deportação, a desumanização e a necessidade imperiosa de jamais esquecer os horrores vistos e experimentados. São poemas que articulam aquilo que é, a rigor, indizível. Em textos como “25 de fevereiro de 1944”, “O canto do corvo (i)”, “Shemá” e “Segunda-feira”, apenas para citar alguns dos mais impressionantes do conjunto (constantes neste volume), a voz lírica oscila entre o desespero, a notação da realidade dura e algumas tentativas, ainda bastante incipientes, de buscar uma luz em meio às trevas. Muito tempo mais tarde, em poemas como “O sobrevivente” e “Dai-nos”, ambos de 1984, a mesma energia ambivalente, entre destruição e restauração, parece dar movimento aos textos. Não são, contudo, peças eivadas de desespero, como se poderia supor. A despeito da negatividade de seus temas e motivos, há algo nesses poemas — talvez devido ao próprio esforço de trazê-los a lume — que parece correr no sentido contrário de uma escrita meramente desencantada. Há neles uma busca pela claridade, um trabalho contínuo contra as sombras.

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Ao longo de toda a sua obra, o que parecia inominável se nomeia: com palavras que parecem cortadas na pedra e, por isso, têm uma força de duração e presença incomuns. Vindo de uma experiência infernal que emudeceu ou desarticulou para sempre não poucos sobreviventes, talvez o maior traço de Levi tenha sido justamente o de tornar dizível o que a muitas almas puras pareceria inefável, dar concretude e visibilidade ao “mundo às avessas” — como se referia a Auschwitz —, traduzir o horror absoluto em palavras claras, cristalinas, e às vezes até jocosas. (Aliás, o humor negro e autodepreciativo é um dos grandes patrimônios da cultura judaica; basta lembrar o dito chistoso que circulava no Lager, referido por Levi: “Daqui só se sai pela chaminé”.)

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O percurso literário de Levi não é linear nem pode ser representado por uma linha ascendente ou descendente: ele é sobretudo circular, cíclico, feito de retomadas, abandonos e retornos, marcado por uma coexistência contínua de temas e motivos, ritmado por oposições e inquietudes […]. Levi trabalha sobre uma série de variações, repetidas e aprofundadas com um cuidado matemático e combinatório dos mais rigorosos. Não só ele não esquece, mas quer que o leitor realize com ele reiteradamente o mesmo trajeto, as operações de uma mesma verificação, porque somente repetindo as provas é possível concluir que o experimento foi bem-sucedido, e até mesmo sugerir novas hipóteses. A guerra é eterna não só nas sociedades humanas, mas também nos domínios da criatividade, do pensamento, da literatura.

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III

Ao selecionar os poemas deste volume e lhe dar o título de Mil sóis, imagem recorrente em muitos versos, procurei manter a ordem cronológica e “diarística” que Levi sempre lhes atribuiu e ressaltar aquilo que se poderia qualificar como sua força de evidência. A capacidade de distinguir com serenidade meridiana o mais específico mesmo ali onde tudo parece estar confundido na grande “zona cinzenta”, magistralmente explorada em seu último livro, Os afogados e os sobreviventes, confirma esse “instrumento portentoso de contato humano” que é a literatura e a poesia.

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Maurício Santana Dias é crítico literário, tradutor e professor doutor da Universidade de São Paulo (USP), com  experiência na área de Letras e ênfase em Literatura Comparada e Tradução Literária. Já traduziu mais de 40 títulos, entre eles: 40 Novelas de Luigi Pirandello, de Luigi Pirandello (Companhia das Letras), Decameron: 10 novelas selecionadas, de Giovanni Boccaccio;  A amiga genial, de Elena Ferrante (Biblioteca Azul); Laços e Assombrações, de Domenico Starnone (todavia).


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