Memória e ressurreição, por Daigo Oliva

Por Daigo Oliva

A revolta de Gwangju se destaca de outras manifestações do período tanto pela violência empregada pelo Exército quanto pela resiliência dos cidadãos. Neste texto, Daigo Oliva escreve sobre este episódio decisivo para a Coreia do Sul, retomado em ATOS HUMANOS, de Han Kang.

 

"Se hoje os ativistas pró-democracia são celebrados em um espaço coberto de homenagens, no passado os corpos de muitos dos que foram assassinados pelos militares foram levados em caminhões de lixo."

 

Como se fossem duas mãos amparando um misterioso objeto oval, dois pilares de 40 metros de altura recebem os visitantes do Cemitério Nacional 18 de Maio, na cidade de Gwangju.

Ali, em uma grande área com mais de 166 mil m², estão enterradas 778 pessoas, entre trabalhadores, agricultores, estudantes, religiosos e artistas, todos eles dissidentes que enfrentaram a ditadura militar que tomou o poder na Coreia do Sul no final dos anos 1970.

Inaugurado em 1997 num país já redemocratizado, o memorial reflete não apenas o quão crucial foi a revolta de Gwangju para a história nacional coreana mas simboliza também um acerto de contas com a truculência dispensada aos manifestantes nos dez dias entre 18 e 27 de maio de 1980.

Se hoje os ativistas pró-democracia são celebrados em um espaço coberto de homenagens, no passado os corpos de muitos dos que foram assassinados pelos militares foram levados em caminhões de lixo para serem despejados em um cemitério da cidade.

Esse desprezo por civilidade e direitos humanos foi moldado pela turbulência contínua que os coreanos viveram nas décadas anteriores. Em 1961, apenas oito anos após o fim da traumática Guerra da Coreia, que deixou ao menos 2,5 milhões de mortos, o país já era comandado por outra ditadura militar.

Os 18 anos do regime autoritário de Park Chung Hee, um general apoiado pelos EUA em meio à Guerra Fria, só seriam interrompidos a tiros. Morto pelo chefe do serviço secreto do país, o ditador deixou um vácuo de poder que seria preenchido por Chun Doo Hwan, alguém que, como descrito por um diplomata ocidental à mídia americana à época, era feito do mesmo barro do antecessor.

A repetição de um golpe militar poucos meses após o assassinato de Park assegurou a continuidade de práticas de repressão à população e à imprensa, o que, por outro lado, também reforçou a atuação de grupos oposicionistas, sobretudo nas universidades coreanas.

A criação da Associação Geral de Estudantes, na Universidade Nacional de Seul, em março de 1980, por exemplo, foi o detonador da formação de outros grupos similares por todo o país, em um processo que mais tarde seria chamado de era dos protestos acadêmicos por democracia e desembocaria naquele sangrento mês de maio.

Antes de centenas — ou milhares, a depender da estimativa — serem assassinados em Gwangju, estudantes saíram às ruas do país para exigir o fim da lei marcial, determinada após a morte de Park, e a saída do general Chun, visto como um resquício do autogolpe aplicado pelo antigo ditador em 1972 para emplacar a Constituição que o manteria no poder sob verniz de legalidade.

Os protestos, na verdade, eram apenas a ponta final de uma longa sequência de demonstrações antiditadura, de greves de fome a declarações contra a interferência 
em atividades estudantis, ainda que as manifestações tenham sido, de fato, o grande catalisador da repressão militar.

O ato de 70 mil alunos de 30 universidades em Seul, em 15 de maio de 1980, foi sucedido pela prisão de 95 líderes estudantis e pela ampliação da lei marcial para todo o país, o que baniu atividades 
políticas e fechou faculdades.

Assim, quando chegou o dia 18 de maio e cerca de 600 estudantes da Universidade Nacional Chonnam, em Gwangju, atiraram pedras num destacamento militar após serem impedidos de comparecer às aulas, a reação foi brutal. Nos dias seguintes, as 
Forças Armadas enviaram brigadas especiais para a cidade, cortaram linhas telefônicas, fecharam estradas e, diante da resistência civil, abriram fogo contra a população.

A revolta de Gwangju se destaca de outras manifestações do período tanto pela violência empregada pelo Exército quanto pela resiliência dos cidadãos. No dia 19, em uma demonstração de força, manifestantes bloquearam uma rua com cerca de 200 ônibus, caminhões e táxis, provocando nova reação truculenta dos militares.

Frente à censura dos meios de comunicação e à veiculação de reportagens que não contavam o que realmente estava acontecendo, ativistas incendiaram o prédio do canal de TV MBC. Outros chegaram a se armar em busca de proteção.

A ditadura de Chun Doo Hwan só terminaria sete anos mais tarde, em 1987, mas a memória de Gwangju ajudou a pavimentar o caminho para a democracia na Coreia do Sul. Em 1998, Kim Dae-Jung, que foi preso e condenado à morte devido à atuação na rebelião, tornou-se o segundo presidente eleito após a redemocratização. Em 2003, foi a vez de Roh Moo Hyun, que também 
teve ligações com a revolta, chegar ao poder pela via popular.

Essas vitórias tardias lembram a mensagem que as colunas do cemitério construído para homenagear as vítimas de Gwangju carregam, já que o misterioso objeto de formato oval sustentado pela estrutura é, na verdade, uma pedra que simboliza ressurreição.

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Daigo Oliva é editor do caderno Mundo da Folha de S.Paulo, jornal no qual já trabalhou nas editorias de Cultura e Fotografia.


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