Leia na íntegra o prólogo de RAIVA, de Bob Woodward
Recém-publicado nos EUA, RAIVA, de Bob Woodward, chegará ao público brasileiro em formato e-book no dia 30 de outubro, com pré-venda a partir de 23 de setembro nas principais plataformas. O título chega às livrarias em formato impresso em janeiro de 2021.
Na tarde de terça-feira, 28 de janeiro de 2020, durante o altamente secreto Informe Diário ao Presidente (PDB, na sigla em inglês), a discussão no Salão Oval girou em torno de um misterioso surto de vírus na China, semelhante à pneumonia. Autoridades de saúde pública e o próprio presidente Trump estavam dizendo ao público que o vírus era de baixo risco para os Estados Unidos.
“Esta será a maior ameaça à segurança nacional que você enfrentará em sua presidência”, disse o conselheiro de segurança nacional Robert O’Brien a Trump, manifestando uma visão contrária e chocante de forma tão deliberada e tão forte quanto possível.
Trump levantou subitamente a cabeça. Ele fez várias perguntas a Beth Sanner, responsável pelo informe da inteligência. Ela disse que a China estava preocupada e a comunidade de inteligência estava monitorando, mas parecia que não seria nada tão sério quanto o surto mortal de Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) de 2003.
“Essa vai ser a coisa mais dura que você enfrentará”, persistiu O’Brien de seu assento ao redor da mesa do presidente, bem ciente de que Trump estava em pleno julgamento de impeachment no Senado, que havia começado doze dias antes e estava consumindo sua atenção. O’Brien acreditava que o assessor de segurança nacional tinha de ver além do presente, pois era seu dever alertar sobre um desastre iminente. E aquele problema era urgente, não uma questão geopolítica que poderia acontecer três anos depois. Aquele vírus poderia se espalhar com muita rapidez pelos Estados Unidos.
O’Brien, de 53 anos, advogado, autor de um livro crítico de Obama e ex-negociador internacional da libertação de reféns americanos, era o quarto assessor de segurança nacional de Trump. Ele ocupava esse importante cargo havia apenas quatro meses e não se considerava o tipo de pessoa que bate com o punho na mesa, mas estava absolutamente convencido de que o surto era uma ameaça real.
“Concordo com essa conclusão”, disse Matt Pottinger, o vice-assessor de segurança nacional, de um sofá mais afastado no Salão Oval. Trump sabia que Pottinger, de 46 anos, que estava com a equipe do Conselho de Segurança Nacional havia três anos, desde o início da presidência de Trump, era excepcional e quase perfeitamente qualificado para fazer essa avaliação.
Sua advertência era confiável e tinha grande peso. Pottinger morara na China durante sete anos e era correspondente do Wall Street Journal durante o surto de Sars. Estudioso da China, falava mandarim com fluência.
Afável, irreverente e viciado em trabalho, Pottinger também era ex-oficial de inteligência da Marinha, trabalho que culminou na coautoria de um relatório influente sobre as inadequações das agências de inteligência americanas.
Pottinger sabia em primeira mão que os chineses eram mestres em ocultar e encobrir problemas. Ele escrevera mais de trinta matérias sobre a Sars nas quais contava que os chineses haviam intencionalmente ocultado informações durante meses sobre a seriedade do surto e minimizado sua disseminação, uma inépcia que permitiu que a Sars avançasse para o resto do mundo. O Wall Street Journal havia inscrito suas reportagens no Prêmio Pulitzer.
“O que você sabe?”, perguntou Trump a Pottinger.
Pottinger disse que nos últimos quatro dias havia telefonado para médicos na China e em Hong Kong com os quais mantinha contato e que entendiam de ciência. Também havia lido a mídia social chinesa.
“Isso vai ser tão ruim quanto em 2003?”, perguntara a um de seus contatos na China.
“Não pense na Sars de 2003”, respondeu o especialista. “Pense na pandemia de gripe de 1918.”
Pottinger disse que ficou pasmo. Estima-se que a pandemia da assim chamada gripe espanhola de 1918 matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo, com cerca de 675 mil mortes nos Estados Unidos.
“Por que você acha que será pior do que em 2003?”, perguntou o presidente.
Os contatos de Pottinger lhe contaram que três fatores estavam acelerando tremendamente a transmissão da nova doença. Ao contrário do que diziam os relatórios oficiais do governo chinês, as pessoas estavam pegando a doença facilmente de outras pessoas, não apenas de animais; isso se chama propagação de humano para humano. Ele acabara de saber naquela manhã que a doença estava sendo espalhada por pessoas que não apresentavam nenhum sintoma; isso se chama propagação assintomática. Sua melhor e mais confiável fonte disse que 50% dos infectados não mostravam sintomas. Isso significava uma emergência de saúde rara, um vírus fora de controle com uma grande quantidade de propagação não detectável de imediato. E ele já se espalhara para longe de Wuhan, na China, onde o surto aparentemente começara. Para Pottinger, eram sinais de alarme máximo.
O mais preocupante, disse Pottinger, é que os chineses haviam colocado em quarentena Wuhan, uma cidade de onze milhões de habitantes, maior do que qualquer cidade americana. As pessoas não podiam viajar dentro da China, digamos de Wuhan a Beijing. Mas não suspenderam as viagens da China para o resto do mundo, inclusive para os Estados Unidos. Isso significava que um vírus altamente infeccioso e devastador já estava provavelmente entrando em silêncio nos Estados Unidos.
“O que fazemos a respeito disso?”, perguntou o presidente.
Corte as viagens da China para os Estados Unidos, disse Pottinger. Ele estava confiante de que as informações de suas fontes eram sólidas, com base em dados concretos, não em especulação. Ele fizera uma pesquisa aprofundada sobre o novo vírus. O primeiro caso fora da China fora relatado em 13 de janeiro, na Tailândia. Claramente, o vírus estava se espalhando de ser humano para ser humano.
Altos funcionários dos Centros de Controle de Doenças (CDC), a principal agência de saúde pública do país, também relataram com crescente alarme a Pottinger que vinham tentando havia semanas enviar detetives de doenças do Serviço de Inteligência Epidêmica americano à China para ver o que estava acontecendo. Os chineses fizeram uma barreira, recusando-se a cooperar e compartilhar amostras do vírus conforme exigido por um acordo internacional.
O diretor do CDC chinês falava como um refém num telefonema, e o ministro da Saúde chinês também recusou a ajuda americana.
Pottinger já tinha visto esse filme antes. Ele acelerou o ritmo de suas ligações no fim de semana de 24 a 26 de janeiro. “Saí daquele fim de semana com os cabelos em pé”, disse Pottinger em particular.
Vários membros da elite chinesa bem conectados com o Partido Comunista e o governo sinalizaram que achavam que a China tinha um objetivo sinistro: “A China não será a única a sofrer com isso”. Se fosse o único país a ter infecções em massa, na escala da pandemia de 1918, a China ficaria em enorme desvantagem econômica. Era uma suspeita, mas alimentada por gente que conhecia muito bem o regime. Uma possibilidade assustadora. Pottinger, um falcão em relação à China, não estava pronto para fazer um julgamento sobre as intenções dos chineses para um lado ou para o outro. Muito provavelmente, o surto era acidental. Mas ele tinha certeza de que os Estados Unidos enfrentariam uma crise de saúde sem paralelo. E a falta de transparência da China só pioraria as coisas. Com a Sars, os chineses haviam ocultado de forma indigna o surto de uma nova e perigosa doença infecciosa durante três meses.
Três dias depois, em 31 de janeiro, o presidente impôs restrições aos viajantes da China, medida que foi contestada por vários membros de seu gabinete. Mas sua atenção pública estava focada em quase tudo, exceto no vírus: o Super Bowl que se aproximava, o fiasco tecnológico da primária democrata em Iowa, seu discurso sobre o Estado da União e, o mais importante, o julgamento de impeachment no Senado. Quando a doença respiratória altamente infecciosa causada pelo novo coronavírus, conhecido como Covid-19, surgiu em locais onde ele teve a oportunidade de atingir um grande número de americanos, Trump continuou a tranquilizar o público dizendo que havia poucos riscos.
“Quão preocupado você está" com o coronavírus?, perguntou Sean Hanity, da Fox, a Trump em 2 de fevereiro, perto do final de uma entrevista antes do Super Bowl destinada, em grande parte, a discutir a “injustiça” do impeachment e atacar seus rivais democratas em 2020.
“Nós praticamente fechamos tudo vindo da China”, disse Trump. A entrevista, uma espécie de tradição presidencial antes do jogo, atraiu a maior audiência de todos os tempos para o controverso e popular entrevistador. “Estamos oferecendo uma ajuda tremenda. Temos o melhor do mundo para isso. [...] Mas não podemos deixar entrar milhares de pessoas que podem ter esse problema, o coronavírus.”
Naquela manhã, até o assessor de segurança nacional O’Brien, que emitira uma advertência ameaçadora poucos dias antes, disse no programa Face the Nation da CBS: “Neste momento, não há razão para os americanos entrarem em pânico. Pensamos que se trata de uma coisa de baixo risco nos Estados Unidos”.
Dois dias depois, em 4 de fevereiro, quase 40 milhões de americanos ligaram a televisão para assistir ao discurso anual do presidente sobre o Estado da União, uma atualização obrigatória constitucional feita ao Congresso sobre as questões mais urgentes que o país enfrenta. O discurso é o momento de maior visibilidade para um presidente tratar de assuntos de grande importância. Na metade do longo discurso, Trump mencionou o coronavírus em um curto parágrafo. “Proteger a saúde dos americanos também significa combater doenças infecciosas. Estamos nos coordenando com o governo chinês e trabalhando juntos no surto de coronavírus na China”, disse Trump. “Meu governo tomará todas as medidas necessárias para proteger nossos cidadãos contra essa ameaça.”
Isso não incluía, no entanto, compartilhar com o público qualquer parte da advertência que recebera.
Mais tarde, quando perguntei ao presidente sobre o aviso de O’Brien, ele disse que não se lembrava. “Sabe, tenho certeza de que ele disse isso”, disse Trump. “Cara legal.”
E numa entrevista que fiz em 19 de março, seis semanas antes de eu saber das advertências de O’Brien e Pottinger, o presidente disse que suas declarações nas primeiras semanas do vírus foram deliberadamente planejadas para não chamar a atenção para o assunto.
“Eu sempre quis minimizar isso”, disse-me Trump. “Ainda gosto de minimizar, porque não quero criar pânico.”
Trump me ligou em casa por volta das nove da noite de sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020. Como havia sido absolvido no julgamento de impeachment do Senado dois dias antes, eu esperava que ele estivesse de bom humor.
“Agora temos um pequeno revés interessante com o vírus acontecendo na China”, disse ele. Ele havia falado com o presidente Xi Jinping na noite anterior.
“Revés?” Fiquei surpreso que o vírus estivesse na cabeça dele, em vez de sua absolvição. Havia somente doze casos confirmados nos Estados Unidos. A primeira morte por coronavírus relatada no país só ocorreria três semanas depois. As notícias eram todas sobre o impeachment.
Os chineses estavam muito focados no vírus, disse Trump.
“Acho que isso vai embora em dois meses, com o calor”, disse ele. “Sabe, quando fica mais quente, isso tende a matar o vírus. Sabe, você espera.”
E acrescentou: “Tivemos uma ótima conversa por um longo tempo. Mas temos um bom relacionamento. Acho que gostamos muito um do outro”.
Lembrei ao presidente que em entrevistas anteriores para este livro ele me dissera que havia confrontado duramente o presidente Xi sobre o plano Made in China 2025 de ultrapassar os Estados Unidos e se tornar o maior produtor mundial de manufatura de alta tecnologia em dez setores, de carros sem motorista a biomedicina. “Isso é um insulto muito grande para mim”, dissera Trump a Xi. O presidente também dissera com grande orgulho que estava “ferrando com a China no comércio” e fizera com que a taxa de crescimento econômico anual da China fosse negativa.
“Ah, sim, tivemos algumas discussões”, reconheceu Trump.
Então, o que o presidente Xi disse ontem?
“Ah, falamos principalmente sobre o vírus”, disse Trump.
Por quê?, me perguntei. “Principalmente?”
“E acho que ele vai dar um jeito”, disse Trump, “mas você sabe, é uma situação muito complicada”.
O que a tornou “complicada”?
“Passa pelo ar”, disse Trump. “Isso é sempre mais difícil do que o toque. Você não precisa tocar nas coisas. Certo? Mas o ar, você simplesmente respira o ar e é assim que ele passa. Então, é muito complicado. É muito delicado. Também é mais mortal, mesmo do que as gripes mais fortes.”
“Mortal” era uma palavra muito forte. Obviamente, estava acontecendo alguma coisa na qual eu não estava focado. Durante o mês seguinte, eu faria viagens para a Flórida e a Costa Oeste, alheio à pandemia crescente. Àquela altura, eu também não sabia que O’Brien havia dito ao presidente que o vírus “será a maior ameaça à segurança nacional que você enfrentará em sua presidência”. Eu não tinha ouvido ninguém pedindo qualquer mudança no comportamento dos americanos além de não viajar para a China. Os americanos continuaram a levar suas vidas cotidianas, inclusive mais de 60 milhões que viajaram de avião internamente naquele mês.
Em nosso telefonema, Trump deu detalhes surpreendentes sobre o vírus.
Ele continuou: “Muito incrível. Isso é mais mortal" do que a gripe, talvez cinco vezes mais.
“É uma coisa mortal”, repetiu Trump. Ele elogiou o presidente Xi. “Acho que ele vai fazer um bom trabalho. Ele construiu vários hospitais em tempo recorde. Eles sabem o que estão fazendo. Eles são muito organizados. E veremos. Estamos trabalhando com eles. Estamos mandando coisas para eles, em termos de equipamentos e muitas outras coisas. E o relacionamento é muito bom. Muito melhor do que antes. Foi prejudicado por causa do acordo [comercial].”
Meu primeiro livro sobre a presidência dele, Medo: Trump na Casa Branca, foi publicado dezessete meses antes desse telefonema de 7 de fevereiro. Medo descrevia Trump como “um líder emocionalmente esgotado, volátil e imprevisível” que criou uma crise governamental e “um colapso nervoso do Poder Executivo do país mais poderoso do mundo”.
Quando discuti o livro na televisão, pediram-me para fazer um resumo final da liderança de Trump. “Tomara Deus que não tenhamos uma crise”, disse eu.
Trump recusou-se a ser entrevistado para Medo, mas disse várias vezes a assessores que gostaria de ter cooperado. Portanto, para este livro, ele concordou em ser entrevistado. Em 7 de fevereiro, estávamos na sexta do que seriam dezessete entrevistas.
Eu perguntei: “Qual é o plano para os próximos oito a dez meses?”.
“Simplesmente fazer bem”, respondeu Trump. “Simplesmente fazer bem. Dirigir bem o país.”
“Ajude-me a definir ‘bem’”, pedi.
“Veja”, disse Trump, “quando você está dirigindo um país, é cheio de surpresas. Há uma dinamite atrás de cada porta.”
Anos antes, eu ouvira certa vez uma expressão semelhante usada pelas forças militares para descrever os perigos e as emoções angustiantes das buscas de casa em casa numa zona de combate violento.
Fiquei surpreso com essa expressão “dinamite atrás de cada porta” de Trump. Em vez de ser o costumeiro otimista, animado ou irritado, o presidente parecia agourento, até mesmo inseguro, com um toque de inesperado fatalismo.
“Você quer dizer uma coisa boa, mas então algo acontece”, Trump continuou. “A Boeing acontece, por exemplo. A Boeing era a maior empresa do mundo e, de repente, deu um grande passo em falso. E isso prejudica o país.” A Boeing ainda está sofrendo com os problemas de seu avião 737-MAX, que encalhou em 2019 após acidentes fatais consecutivos num período de cinco meses na Indonésia e na Etiópia, os quais mataram todas as 346 pessoas a bordo.
“A General Motors entra em greve”, disse Trump, dando outro exemplo. Quase 50 mil trabalhadores da indústria automobilística fizeram uma greve de quarenta dias no segundo semestre de 2019. “Eles não deveriam ter feito isso. Deveriam ter sido capazes de resolver isso. Mas não conseguiram. Eles entram em greve. Centenas de milhares de pessoas não estão trabalhando. Todas essas coisas acontecem. E você tem que se dar bem.”
“Há uma dinamite atrás de cada porta” parecia a declaração mais autoconsciente sobre o perigo, as pressões e as responsabilidades da presidência que eu já ouvira Trump fazer em público ou privado.
No entanto, a manchete inesperada do telefonema também foi seu conhecimento detalhado do vírus e sua virulência mortal já no início de fevereiro, mais de um mês antes de começar a engolfar a ele, sua presidência e os Estados Unidos. E em desacordo tão grande com seu tom público.
Os detalhes de sua conversa com Xi eram preocupantes. Só mais tarde eu soube que muito mais havia sido escondido: que seus principais assessores de segurança nacional da Casa Branca o haviam alertado sobre um desastre iminente nos Estados Unidos e acreditavam que a China e Xi não eram confiáveis; que seus principais assessores de saúde haviam tentado desesperadamente levar uma equipe médica à China para investigar; que o próprio Trump se oferecera para ajudar Xi e fora pessoalmente rejeitado.
Xi estava escondendo muito. Trump também.
Quem foi o responsável pelo fracasso em alertar o público americano da iminente pandemia? Onde estava a falha? Quais decisões de liderança Trump tomou ou deixou de tomar nas primeiras semanas cruciais? Eu levaria meses para obter respostas a essas perguntas.
Depois de escrever Medo, pensei que era provável que a crise potencial com a qual me preocupava pudesse surgir das relações exteriores, onde Trump tinha menos experiência e assumia os maiores riscos. Então, quando comecei minha nova reportagem para este livro no ano passado, bem antes da chegada do vírus, decidi olhar novamente e com mais profundidade para a equipe de segurança nacional que ele recrutou e montou nos primeiros meses após sua eleição em 2016.
Agora vejo que a maneira como Trump tratou do vírus — certamente o maior teste para ele e sua presidência, pelo menos até agora — reflete os instintos, os hábitos e o estilo adquiridos nos primeiros anos como presidente e ao longo de sua vida.
Uma das grandes perguntas de qualquer presidência é: como ela acaba? Mas o mesmo se pode dizer da pergunta: como ela começou? Então, vamos lá.