Euclides da Cunha e o Exército

Por José Murilo de Carvalho

José Murilo de Carvalho analisa a relação entre Euclides da Cunha e os militares em texto de FORÇAS ARMADAS E POLÍTICA NO BRASIL

Não são muitos os estudos sobre as relações entre Euclides da Cunha e o Exército. Com poucas exceções, dentre as quais avulta a do general Umberto Peregrino, o tratamento do tema limita-se à experiência na Escola Militar, com destaque para o episódio da insubordinação, sem maior aprofundamento.

Uma das razões desse relativo desinteresse pelo tema pode dever-se ao fato de ter Euclides abandonado a farda como primeiro-tenente, ainda no início da carreira, tempo que seria curto para marcar sua personalidade. Outra razão, talvez inconsciente, poderia ser o desejo de evitar a lembrança da morte trágica do escritor nas mãos de um aspirante a oficial, que também matou o segundo filho de Euclides. Uma terceira razão, ligada à anterior, pode ser a animosidade contra os militares, exacerbada durante a campanha civilista de Rui Barbosa, que disputava a presidência com o marechal Hermes da Fonseca, no mesmo ano da morte do escritor.

Seja como for, a desatenção não se justifica.

Em primeiro lugar, porque Euclides da Cunha, embora não tivesse ido além de primeiro-tenente, passou no Exército nove anos de sua vida, entre 1886 a 1896, à exceção apenas de 1889. Além disso, viveu cercado de militares. Seu sogro, o futuro general Sólon, e três cunhados pertenciam a tradicional família de militares gaúchos. Dilermando de Assis, que o matou em 1909, era filho e sobrinho de militares gaúchos. O irmão de Dilermando, Dinorah, era na mesma época da morte de Euclides aluno da Escola Naval. Euclides Ribeiro da Cunha Filho era aluno da Escola Naval quando também foi morto por Dilermando, em 1916. Finalmente, Euclides foi a Canudos como adido do Estado-Maior do ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt. Voltou a cercar-se de militares quando chefiou a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus.

Em segundo lugar, porque militares foram protagonistas de dois episódios cruciais de sua vida, o que o tirou da obscuridade em 1888, na Escola Militar, e o que o tirou da vida em 1909, em uma casa do bairro da Piedade. Em terceiro lugar, porque a Escola Militar e a Escola Superior de Guerra fizeram sua cabeça política e filosófica. Em quarto lugar, porque o ensino da Escola, em sua parte técnica, forneceu a Euclides elementos preciosos para analisar e avaliar com mais precisão os aspectos militares da campanha de Canudos. Em quinto lugar, porque foi o Exército que incutiu no filho de um guarda-livros um profundo senso de brasilidade. Por fim, porque sem as relações de Euclides com o Exército simplesmente não teríamos celebrado o centenário de Os sertões em 2002, o que seria ruim, e não estaríamos lembrando este ano o centenário de sua morte, o que seria bom. Não há, portanto, diria Euclides, como fugir à análise do tema.

O Tabernáculo da Ciência

Depois de cursar durante um ano a Escola Politécnica, Euclides Rodrigues da Cunha inscreveu-se na Escola Militar da Corte em 26 de fevereiro de 1886. Segundo a ficha de matrícula, tinha vinte anos de idade, 1,65 metro de altura, cor morena, olhos pardos e cabelos castanhos lisos, que, segundo depoimento de colegas, estava ele sempre a pentear e alisar e no qual ninguém podia tocar. A ficha só registra a cor dos olhos. Mas o que em sua figura impressionava a todos eram os olhos grandes e brilhantes. Sua futura mulher, Ana Emília Ribeiro, quando o viu pela primeira vez em 1889, achou-o um “tipinho esquisitinho” e muito feio, mas registrou seu “olhar fulgurante”. O tipinho recebeu o número 308, foi incorporado à segunda Companhia e passou a fazer parte de uma comunidade de cerca de oitocentos alunos.

A Escola Militar da Praia Vermelha, sediada em um prédio imponente, fora reaberta em 1874. Desde então, e até seu fechamento, em 1904, motivado pela participação dos alunos na Revolta da Vacina, representou papel importante na vida da cidade e na política nacional. Separada da Escola Central, que, sob o nome de Politécnica, se encarregou do ensino da engenharia civil, a Escola Militar continuou a dar ênfase ao ensino das ciências e da engenharia. A quem completasse os cinco anos do curso, como foi o caso de Euclides, era concedido o diploma de bacharel em matemática e ciências físicas e naturais, um título nada militar. Sua importância na formação de Euclides foi muito grande. Buscarei resumi-la distinguindo quatro dimensões, a cultural, a intelectual, a política e a social.

Pelo lado cultural, paralelamente às matérias do curso, fortemente centradas nas matemáticas, engenharias e ciências da natureza, os alunos desenvolviam intensa atividade extracurricular em sociedades, clubes e revistas literárias. As revistas eram porta-vozes dos clubes. Destacaram-se, por ordem cronológica, a Phenix Literária (1878), a Club Acadêmico (1879), e a Revista da Família Acadêmica (1886). O conteúdo dos debates nas sociedades e dos artigos das revistas tinha muitas vezes pouco a ver com a arte da guerra. Era, sobretudo, literário, científico e filosófico. A revista Phenix trazia artigos sobre “A poesia científica”, “O celibato”, “A positividade do século”. A Revista do Club Acadêmico não destoava e publicava trabalhos sobre “A morte do amor”. A Revista da Família Acadêmica, de cuja direção fazia parte Cândido Mariano da Silva (Rondon), falava sobre “Evolução cósmica”, “H. Spencer e o evolucionismo”, “Concepção de Leibniz”.

Além das sociedades literárias, havia grupos teatrais que montavam peças e as encenavam em espetáculos abertos ao público. Um dos mais destacados atores militares foi o futuro marechal Setembrino de Carvalho, ministro da Guerra de Artur Bernardes. Era tal o entusiasmo dos alunos pelo teatro e pelas atrizes que certa vez tomaram o lugar dos cavalos que puxavam a carruagem de Sarah Bernhardt. A música foi também cultivada dentro da Escola e nas serenatas noturnas em homenagem às belas de Botafogo e do Flamengo. Depoimentos de ex-alunos da época de Euclides garantem mesmo que o maxixe teria sido inventado lá dentro nos caroços, que vinham a ser bailes em que dançavam cadetes vestidos de homem com cadetes vestidos de mulher. Fico imaginando uma parada militar ao ritmo de um maxixe.

No que diz respeito à dimensão intelectual, a Escola era marcada pela invasão de filosofias importadas da Europa, uma invasão também verificada nas academias de direito e medicina e na Politécnica. As correntes mais populares eram o positivismo e o evolucionismo, com seus respectivos gurus, o francês Auguste Comte, os britânicos Charles Darwin e Herbert Spencer, e o alemão Ernest Haeckel. A juventude estudantil militar era dominada por crença fanática no poder da ciência. Esse cientificismo, partindo das ciências exatas e da biologia, estendia-se à sociedade, como doutrinavam Comte e Spencer. A sociedade, ou, no caso de Comte, a Humanidade com H maiúsculo, eram governadas por leis tão rígidas quanto as da biologia ou da astronomia. Contra tais leis lutavam inutilmente os inimigos do progresso. “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”, sentenciara Comte. A terminologia cientificista permeava discussões e artigos dos cadetes. Os editores da Revista da Família Acadêmica apresentaram-na, no primeiro número, de novembro de 1887, como “fenômeno superorgânico e tanto quanto um ser vivo que se modifica no sentido de suas conformações com o meio, sob a ação incoercível da lei biológica da adaptação”. Um aluno escreveu na Revista do Clube Acadêmico, citando o monista Haeckel, que a forma mais antiga e simples do amor era “a afinidade eletiva de duas células diferentes, a célula espermática e a célula ovular”.

A faceta política da Escola é mais conhecida porque é um componente da conjuntura que vivia o país na segunda metade da década de 1880. A Escola Militar, as outras escolas superiores, a imprensa, o mundo político, todos discutiam a abolição e, sobretudo depois de 1888, a República. Os militares envolveram-se ainda no que ficou conhecido como a Questão Militar. Na Escola, os três temas, abolição, questão militar e República, estiveram estreitamente relacionados e se alimentaram mutuamente. O abolicionismo lá chegou já em 1880, quando foi criada uma Sociedade Emancipadora que fazia propaganda e coletava fundos para a libertação de escravos. Em 1883, ela se uniu a outras sociedades dedicadas à mesma causa para fundar a Confederação Abolicionista. Em 1887, os alunos publicaram por conta própria um discurso de Rui Barbosa pronunciado na Confederação Abolicionista, aplaudindo a adesão do Exército à causa da libertação dos escravos. Como se sabe, houve várias manifestações de militares em favor da abolição. A mais contundente foi o apelo que o Clube Militar dirigiu ao governo, em 1887, assinado por seu presidente, o então general Deodoro, solicitando que o Exército não fosse empregado na captura de escravos fugidos. Os alunos da Escola foram ainda mais longe. Segundo alguns depoimentos, eles teriam desenvolvido ação semelhante à dos caifazes de Antônio Bento em São Paulo: furtavam escravos, escondiam-nos em suas repúblicas e os enviavam para o Norte.

A causa da República vinha estreitamente acoplada ao abolicionismo. A luta contra a escravidão era muitas vezes um pretexto para combater a monarquia. Há registro da existência de um clube republicano na Escola Militar já em 1878, quatro anos depois da sua reabertura. Outro foi fundado em 1885, um ano antes da incorporação de Euclides. Em maio de 1888, os alunos fizeram uma grande festa para seu professor, Benjamin Constant, a propósito de sua promoção a tenente-coronel. Com isso, conseguiram seduzi-lo e levá-lo a assumir posição de militância republicana. Benjamin era um professor de matemática que as grandes dificuldades financeiras para sustentar a família tinham levado à carreira militar para a qual, como Euclides, não tinha vocação alguma. Apesar de ter participado como engenheiro da Guerra do Paraguai, era contra guerras e achava que o destino das armas no futuro seria a aposentadoria no museu da história. Sua única atuação política anterior se verificara durante a Questão Militar, quando tomou posição ao lado dos colegas que defendiam os interesses da corporação contra o que consideravam arbítrio do governo. No entanto, coerente com sua fé positivista, era um republicano convicto. Para Comte, a ditadura republicana era o regime que deveria presidir à transição final do estado metafísico para o estado positivo da humanidade. A partir da festa dos alunos, ele se tornou seu porta-voz, sustentando suas reivindicações com a autoridade de um oficial superior. Quando a efetivação da abolição em 1888 reduziu o ímpeto oposicionista dos republicanos, o recrutamento do tenente-coronel revelou-se estratégico para a reativação da Questão Militar como nova arma contra a monarquia.

A notória insatisfação de Deodoro com o governo foi explorada ao máximo com a finalidade de convencê-lo a liderar um movimento antimonárquico. Entre os principais incentivadores do conflito estava a mocidade da Escola Militar e agora também da Escola Superior de Guerra, criada em 1889 para abrigar os alunos dos dois últimos anos do curso da Praia Vermelha. A eles se juntavam os jovens oficiais, capitães e tenentes, recém-saídos da Escola e alocados em regimentos da capital. Um reforço importante para a luta chegou em 1889, vindo do Rio Grande do Sul, o major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro, também republicano, e futuro sogro de Euclides da Cunha. Sólon ficou conhecido por precipitar os acontecimentos ao sair espalhando boatos pela cidade no dia 14 de novembro. Inventou que Deodoro e Benjamin tinham sido presos e que os regimentos de São Cristóvão seriam atacados pela Guarda Nacional, pela Guarda Negra e pela polícia. Seus quinze minutos de glória aconteceram quando entregou a Pedro ii a intimação para deixar o país. Os boatos tiveram efeito imediato. As unidades puseram-se em marcha para a praça da República sem que Deodoro disso tivesse conhecimento. Segundo depoimentos de participantes, a maioria dos soldados estava convencida de que ia lutar contra as duas guardas e a polícia.

Finalmente, a dimensão social. Pelo que já foi dito, e como o reconhecem os historiadores, a Escola Militar da Praia Vermelha não formava soldados, formava bacharéis fardados. Há muitos depoimentos de ex-alunos nessa direção. Baste-me citar o do marechal Estevão Leitão de Carvalho, militar ilustre, ex-membro do grupo de oficiais que estagiou no Exército alemão e que ficou conhecido como Jovens Turcos. Leitão de Carvalho frequentou a Escola no início do século xx:

A ausência de espírito militar nos cursos das escolas do Realengo e da Praia Vermelha tinha feito de mim um intelectual diletante, que não sabia bem para onde se virar: se para as ciências exatas, a literatura ou, simplesmente, os assuntos recreativos do espírito.

Veio de outro ex-aluno, contemporâneo e amigo de Euclides, Alberto Rangel, a definição da Escola como “uma academia em um quartel”. Os alunos referiam-se em geral a ela como Tabernáculo da Ciência, título que lembra o de Sorbonne usado para designar a moderna Escola Superior de Guerra. Suspeito que meu saudoso professor Francisco Iglésias se referiria às duas designações com um adjetivo que só dele ouvi: desfrutáveis.

Mas é importante notar que havia grande diferença entre os bacharéis fardados e os bacharéis civis. Iguais na formação, nas ideias, na mobilização política, eles diferiam na origem social. Muitos dos alunos que frequentavam as escolas de direito e medicina eram filhos de famílias capazes de sustentá-los longe de casa no Recife, em Salvador, em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Muitos eram filhos de membros da elite política que governava o Brasil desde a independência. O destino principal dos bacharéis em direito era a burocracia, como magistrados, e a política. Foi só nas últimas décadas do século que o excesso de oferta de bacharéis em relação à oferta desses cargos e ao mercado para advogados reforçou neles a tendência à rebeldia política.

Outra era a situação dos alunos das escolas militares. Em sua grande maioria provinham de famílias militares e de famílias de poucos recursos. Não tinham condição de sobreviver sem ajuda adicional. Essa ajuda era fornecida pelas escolas militares. Além de oferecerem ensino gratuito, elas forneciam alojamento e pagavam um pequeno soldo mensal. Na época de Euclides, esse soldo era de 3410 réis, ou seja, 365 mil-réis por ano. A quantia era muito modesta, pois um servente de repartição pública ganhava 600 mil-réis. Mas era suficiente para pagar as despesas essenciais. Na Praia Vermelha, havia ainda uma prática entre os alunos de ajudar financeiramente os colegas mais necessitados. À noite, alguém colocava algum dinheiro sob seus travesseiros.

Essa inferioridade social, responsável também pelo preconceito contra os militares do Exército, foi compensada pelo nivelamento educacional. Ao final do século, os bacharéis fardados que permaneciam no Exército desenvolveram a autoimagem de uma contraelite, ansiosa por disputar o poder aos bacharéis civis. A proclamação e os primeiros anos da República constituíram o ponto culminante de sua luta.

Euclides, bacharel fardado

Definidas as características da Escola Militar, qualquer estudioso de Euclides reconhecerá nele todas elas. Na Escola, ele pôde combinar os estudos técnicos e científicos com a literatura e a filosofia. Boa parte de suas contribuições à Revista da Família Acadêmica consistiu em poemas como “A flor do cárcere”, “Fazendo versos”, “Cristo” e “Estância”. Um de seus poucos artigos foi dedicado a desancar os críticos literários. E nada mais fácil do que identificar em Os sertões uma combinação única da ciência com a filosofia e a poesia. Estará aí talvez a razão da dificuldade que todos encontram em classificar o livro em algum gênero literário.

A presença do espírito e das filosofias do século XIX em sua obra é evidente. Seu cientificismo está alicerçado nos autores lidos na Escola, com o acréscimo posterior de alguns outros. Os artigos que publicou na Província de São Paulo, depois Estado de S. Paulo, após sua exclusão da Escola Militar, estão repletos de conceitos tirados de Comte e Spencer. Fala na “marcha retilínea e imutável das leis naturais da civilização”, na “história natural das sociedades”, no fato de que “a República se fará hoje ou amanhã, fatalmente, como um corolário de nosso desenvolvimento”, refere-se “às cabeças geniais de Comte, Huxley, Haeckel, Darwin e Spencer”. Referindo-se a Comte, diz que, embora não pertencesse ao grupo dos seguidores ortodoxos do filósofo, “em nosso tirocínio acadêmico nos [subordinamos] ao método filosófico do eminente instituidor da síntese subjetiva, o mais admirável livro do século XIX, e o [veneramos] como o maior dos mestres”. No poema “Lirismo a disparada”, coloca-se modestamente a caminhar no firmamento em companhia de Comte e Voltaire: “eu, o Voltaire e o Comte”.

Politicamente, Euclides estava de todo sintonizado com o ambiente da Escola, embora não se tenha destacado durante o curso, seguramente por causa de suas proverbiais timidez e introversão. Foi abolicionista convicto e republicano fanático. E aqui é inevitável falar do caso de sua insubordinação diante do ministro da Guerra, um momento-chave em sua vida. Apesar de relativamente recente e de ter havido várias testemunhas oculares, o episódio não foi até hoje esclarecido satisfatoriamente. Sua verdade histórica é sua ambiguidade. Apresento alguns elementos dessa ambiguidade com o auxílio de alguns depoimentos de testemunhas oculares e das versões de alguns jornais.

Rondon registrou o seguinte: “uma espada que se devia abater em continência é atirada aos pés da pacífica autoridade, depois de vergada em um esforço nervoso que a tentara em vão quebrar”. Alberto Rangel, confessando que nada tinha visto por pertencer à 4a companhia, estando Euclides na 1a, depôs por esse modo: “Euclides, em um gesto característico de impulsivo, tirou a arma do ombro em dois movimentos de ordenança bem resumidos e, tentando talvez simbolicamente quebrá-la no joelho, atirou-a aos pés do ministro da Guerra”. O general Hastimphilo de Moura, que foi depois ministro da Guerra de Epitácio Pessoa, forneceu mais detalhes:

 [...] todos viram, com grande estupefação, um aluno sair de forma, marchar resoluto para o ministro da Guerra, junto de quem tentou partir o sabre, fincando-o repetidas vezes ao chão. Não o conseguindo, retirou-o da carabina, que abandonou, e, segurando-o pelas extremidades, empenhou-se em quebrá-lo contra o joelho.

E segue dizendo que, não conseguindo quebrar a arma, atirou-a ao chão e disse ao ministro que a razão do gesto fora a falta de promoção a alferes-aluno e o fato de ser republicano.

Do lado do governo, há duas testemunhas, o ministro da Guerra, Tomás José Coelho de Almeida, e o senador Silveira Martins, que o acompanhava e tinha um filho matriculado na Escola. O incidente se dera no dia 4 de novembro, um domingo. O jornal A Gazeta de Notícias, de Ferreira de Araújo, publicou na segunda, dia 5, uma notícia sensacionalista dizendo que o aluno Euclides da Cunha “despedaçou a arma e a arremessou contra o sr. Tomás Coelho”, e que, ao se retirar o ministro, “os alunos prorromperam em vivas a Lopes Trovão”, o líder republicano que desembarcava nesse dia da Europa. No mesmo dia 5, alguns deputados liberais, inclusive Joaquim Nabuco, referindo-se à nota da Gazeta, cobraram explicação do ministério conservador de João Alfredo. O ministro da Guerra escreveu uma carta que foi lida na Câmara pelo ministro do Império, José Fernandes da Costa Pereira Junior. A carta dizia: “[...] quando o corpo de alunos marchava, formado, em continência, um deles atirou a arma ao chão e tentou quebrar a baioneta, que também arremessara, saindo da forma. É, porém, inteiramente falso que houvesse atirado a arma ou a baioneta em direção a mim”.

No Senado, Silveira Martins depôs: “um moço visivelmente nervoso atirou a arma ao chão, torceu a baioneta e saindo de forma retirou-se”. Acrescentou que o moço parecia uma pilha elétrica, tão nervoso estava. No resto da imprensa, o Jornal do Commercio, como era de esperar, adotou a posição do governo, criticando duramente a Gazeta. O republicano O Paiz, de Quintino Bocaiúva, relatou que um aluno, moço distinto, “acometido inesperadamente de violenta superexcitação nervosa, desrespeitou um dos primeiros postos do Exército atirando-lhe aos pés o cinturão e o sabre que anteriormente procurara quebrar”. A Revista Illustrada, do também republicano Angelo Agostini, censurando a Gazeta, disse apenas que “um aluno produziu gestos e movimentos irregulares”.

Como se vê, não há acordo algum sobre o que Euclides fez. O que chama a atenção é que o próprio Euclides nunca escreveu qualquer coisa no sentido de esclarecer um gesto que foi responsável por sua notoriedade inicial e lhe reabriu as portas do Exército um ano depois. Pode-se perguntar se não teria motivo para manter as versões contraditórias. Minha impressão é que sim. Ele não escreveu sobre o episódio, mas falou. A 15 de abril de 1906, jantando na casa de Gastão da Cunha, contou que havia um plano combinado entre seis ou sete alunos de não apresentarem armas ao ministro e de dar vivas à República durante o desfile. Aconteceu que na hora, à ordem de apresentar armas, todos obedeceram e ninguém cumpriu o trato. Indignado com o recuo dos colegas, tirou o sabre do cinturão e tentou quebrá-lo. Não o conseguindo, atirou-o ao chão “com todo o cuidado para que caísse junto de si. Absolutamente não atirou contra nem na direção do ministro”. Essa versão se aproxima da que nos foi transmitida por Afrânio Peixoto, que sem dúvida também a ouviu de Euclides. Esse autor acrescenta que, simultaneamente ao gesto, Euclides teria gritado: “Infames! A mocidade livre cortejando um ministro da monarquia!”.

A se confiar na memória de Euclides e na de Gastão da Cunha, relatadas por Rodrigo Melo Franco, pode-se entender seu silêncio e seu interesse em manter a guerra das versões. Surpreendentemente, a versão do rebelde coincide com a do ministro e a de Silveira Martins no que se refere ao gesto e à intenção: ele não jogou a arma em direção à autoridade nem pretendeu desrespeitá-la. Difere das duas na medida em que elas buscaram atribuir o gesto apenas a uma crise de nervos. Ela reafirma a natureza política do gesto, só que contra os colegas e não contra o ministro. Ora, Euclides, expulso do Exército, foi rapidamente recrutado pelo jornal A Província de São Paulo para fazer propaganda republicana. Logo depois da proclamação, seus ex-colegas, agora na Escola Superior de Guerra, conseguiram de Benjamin Constant, novo ministro da Guerra, sua promoção a alferes-aluno e a reintegração ao Exército e o apresentaram a um dos heróis do momento, o major Sólon, em cuja casa conheceu a futura mulher. Euclides tornara-se uma espécie de herói da República. Nessa situação, entende-se que seria muito incômodo para ele admitir que o protesto fora contra os colegas, e que os chamara depreciativamente de infames. Ao mesmo tempo, não estava em sua personalidade dizer inverdades. A saída para o dilema era o silêncio. De qualquer modo, a versão do episódio mais seguida até hoje é a menos “verdadeira”, a da Gazeta de Notícias. Assim se faz a história.

Resta falar da condição social de Euclides. Como vimos, os alunos da Escola Militar provinham em sua maioria de famílias militares e de famílias de posses modestas. Consta que Euclides teve um tio materno, Cândido José de Magalhães Garcez, que era coronel. Mas, como se tratava de fazendeiro, é quase certo que fosse coronel da Guarda Nacional e não do Exército. Mas Euclides se enquadrava no segundo critério. Seu pai era contador. Comprou uma fazenda em São Paulo, para onde se mudou em 1886. Mas não parece ter tido muito êxito porque faleceu em 1909 devendo 280 contos. O fato de ter Euclides, com a mudança do pai para São Paulo, trocado a Politécnica pela Escola Militar pode indicar dificuldades financeiras. O pai seguramente lhe disse que não tinha mais condições de sustentá-lo, ou ele não quis ser pesado ao pai. Nessas circunstâncias, o alojamento e o soldo da Escola Militar eram muito bem-vindos. Os biógrafos concorrem em dizer que, ao longo de toda a vida, a situação financeira de Euclides nunca foi folgada. Ele próprio se referia com frequência nas cartas a amigos às muitas contas que tinha para pagar e se definiu como um pobretão. Quando quis sair do Exército em 1895, consultou o sogro, já feito general, sobre que decisão tomar.27 O general opôs-se à ideia dizendo que o serviço militar era a melhor profissão do país. Afirmação dessas só poderia ser feita a alguém de posses modestas, pois os soldos não eram altos, embora tivessem subido bastante depois da proclamação da República. Pode-se concluir que, como quase todos os seus colegas da Escola Militar, Euclides não se identificava com a elite econômica do país. Era um bacharel fardado, pobre e caboclo.

Outro traço que herdou de seu contato com o Exército, embora não particularmente marcante na Escola, foi o nacio- nalismo. Não poupava críticas ao país, do qual muitas vezes chegava a desistir. Mas nunca abandonou realmente o zelo patriótico que se exacerbou durante a Revolta da Armada, “nunca o senti tão violento”. De maneira mais benigna, o nativismo reapareceu quando entrou em contato com militares peruanos no exercício da chefia da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Uma vez aborreceu-se com a ausência de bandeira brasileira em banquete de comemoração oferecido pelos peruanos. Outra vez sentiu-se humilhado ao assistir à celebração da data nacional do Peru e ouvir os soldados cantarem o hino. Não poderia fazer o mesmo na data nacional brasileira porque nosso hino simplesmente não tinha letra. Ao regressar, contou o caso ao deputado Coelho Neto, que, por sua vez, convenceu os colegas a aprovarem uma lei criando um concurso para a escolha do hino brasileiro. O concurso, como se sabe, foi ganho por Osório Duque Estrada. Confesso que ignorava essa contribuição de Euclides a nosso hino.

Euclides, Exército e deusas gregas

A influência do Exército e, em particular, da Escola Militar na formação intelectual, política e cívica de Euclides não impediu que fosse tumultuada a convivência entre eles. É conhecida sua relação com a instituição depois do ato de insubordinação na Escola Militar. Excluído da força por incapacidade física, graças ao apelo do pai e de um tio à clemência do imperador, foi reintegrado após a proclamação da República. Em 1892, recebeu o diploma de bacharel em matemática e ciências físicas e naturais e foi promovido a primeiro-tenente, o posto mais alto que atingiu na carreira. Depois de transitar por vários postos na condição de engenheiro militar, inclusive montando baterias durante a Revolta da Armada, obteve afinal a reforma em 1896, abandonando o que chamou de “madrasta classe militar”.30 Saiu deixando uma pífia fé de ofício, pontilhada de rebeldias, licenças médicas, agregações.

Ainda na Escola, confessara ao colega Moreira Guimarães que sua aspiração era ser jornalista.32 No mesmo ano da diplomação, manifestou em carta a Porchat o desejo de “abandonar uma farda demasiadamente pesada para os meus ombros”, de deixar uma “carreira incompatível com o meu gênio”. Voltou ao assunto em 1895, dizendo-se incapaz fisicamente para a vida militar, e acrescentando: “incapaz fisicamente porque moralmente creio-me incompatível de há muito com ela”. Mas as relações não foram cortadas. Em 1897, quando o Estado de São Paulo o convidou para ser seu enviado a Canudos, ele foi nomeado por Prudente de Morais adido do Estado-Maior do ministro da Guerra marechal Carlos Machado Bittencourt. Desse oficial, que foi assassinado ao regressar de Canudos, quando tentava proteger o presidente do ataque de um fanático, Euclides traçou magnífico perfil, assim como o fizera de Floriano Peixoto e do coronel Moreira César. Foi nessa posição privilegiada que viajou a Canudos e observou os últimos dias do arraial. Voltou a se encontrar com militares na Comissão Brasileira do Reconhecimento do Alto Purus. E teve com militares o encontro final a 15 de agosto de 1909.

Uma objeção que se pode levantar à tese da importância do Exército na vida e no pensamento de Euclides é o fato, aqui apontado, de ter a Escola imitado as academias civis. Euclides, poder-se-ia argumentar, teria a mesma cabeça se frequentasse a Politécnica do Rio de Janeiro ou a Faculdade de Direito de São Paulo. A objeção é válida apenas para o campo das ideias, não para a política. Já vimos que diferenças sociais separavam os bacharéis de farda dos bacharéis civis. A diferença social foi instrumentalizada politicamente na Escola pela teoria do soldado-cidadão pregada por Benjamin Constant. Segundo essa doutrina, o militar era um cidadão fardado com os mesmos direitos políticos dos cidadãos desarmados. O próprio Rui Barbosa, em sua campanha contra o gabinete Ouro Preto, ajudou a difundir esse conceito deletério da disciplina militar. Se, por hipótese, Euclides tivesse praticado qualquer gesto de protesto na Politécnica, ele não teria tido nem de longe o efeito daquele que executou na Escola Militar, dentro das premissas do soldado-cidadão. O gesto não teria sido discutido na imprensa, na Câmara e no Senado, e não teria feito dele um herói da República. No máximo, o colocaria ao lado de um Lopes Trovão ou de um Silva Jardim. Praticado na Escola Militar, transformou Euclides em símbolo do conflito da juventude castrense com o governo, que era também um conflito com o sistema político vigente.

As consequências do gesto são conhecidas: baixa do Exército, recrutamento pelo jornal republicano Província de São Paulo, reincorporação em 1889, apresentação ao major Sólon, casamento com Ana Emília, ida a Canudos, escrita de Os sertões, ingresso na ABL e no IHGB, traição da mulher, morte em 1909. Tire-se o gesto de 1888 e o resto da história cai por terra. Euclides parece ter pressentido a sombra da fatalidade em sua vida. Doze dias antes da morte, falou no destino que o andava jogando como peteca pelo mundo. Em 1o de fevereiro de 1909, em plena crise matrimonial, escreveu a Vicente de Carvalho:

“Quem definirá um dia essa maldade obscura e misteriosa das coisas que inspirou aos gregos a concepção indecisa da Fatalidade?”. Ele, que se dizia um grego perdido em Bizâncio e que acreditava em uma humanidade guiada pelas leis da ciência, encontrara dentro de si sintomas de outro mundo, alheio à razão, e que o acabrunhava. À frase citada ele acrescentou, pensando seguramente nas teorias de Comte e de Spencer: “Às vezes julgo necessário um Newton na ordem moral para fixar em uma fórmula formidável o curso inflexível da Contrariedade”. No mundo grego, essa aspiração correspondia ao território de Atena, a deusa da inteligência e da ciência. Mas quem tecia a sorte dos mortais era o capricho das três Moiras, as deusas fiandeiras. Ao falar da fatalidade dos gregos, Euclides parece ter intuído a presença em sua vida dessas tecelãs dos destinos. Dessas Moiras que podiam transformar uma simples decisão do grego Euclides de trocar de escola em uma trajetória para a glória e para a tragédia.

A ninguém melhor do que a Euclides da Cunha se poderia aplicar a sentença do anjo torto de Drummond: “Vai, Euclides, ser gauche na vida”. Ele foi gauche no Exército, na engenharia, no casamento, na vida. O mais sublime e genial dos gauches.

 

* Agradeço a Renata Peixinho Dias Vellozo pela ajuda no levantamento de dados para a redação deste capítulo.

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José Murilo de Carvalho é doutor em Ciência Política pela Universidade de Stanford, com pós-doutorado em História pela Universidade de Londres, professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras. Em julho, participa da Flip - Festa Literária Internacional de Paraty, dia 12 (sexta-feira), às 15h30, na mesa Tróia de Taipa. Saiba mais aqui.


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