Eu tenho medo da Jia Tolentino
Eu tenho um medo danado da Jia Tolentino. Um, não, vários. Primeiro, porque ela é uma representante “otimizada” da geração millennial. Perto dela, eu, da geração X, me sinto um tijolão da Nokia diante do último iPhone. Enquanto nós, da geração X, sabemos fazer só uma ou duas coisas, a millennial faz várias: por isso, “Falso espelho” parece uma coletânea de ensaios de diversos autores.
Como acreditar que a menina que aos 16 participou de um Reality Show em Porto Rico é a mesma que cresceu imersa na fé de um gigantesco templo protestante no Texas? E que a jovem beata trocou o torpor místico pelo êxtase do MDMA? Logo antes de participar dos Peace Corps, período em que contraiu tuberculose num vilarejo do Quirguistão. Doença que a fez se ligar em saúde e abraçar apaixonadamente um método de exercício chamado Barr, que mistura balé, música frenética, luz estrobo e alguma dose de ninfomania.
Tenho medo da inteligência da Jia Tolentino. Aos trinta anos ela é uma estrela em ascensão da melhor revista do mundo, a New Yorker, tratando de assuntos que vão de Flaubert a vaporizadores – passando por águas-vivas. David Remnick, editor da revista, gargalha toda vez que ela, com uma fala acelerada e um humor pontiagudo, participa do podcast “New Yorker Radio Hour”. (Remnick gargalha de um jeito assombrado e um pouco aflito: desconfio que ele também tenha medo da Jia Tolentino).
Tenho medo do poder que emana da Jia Tolentino, um poder feminista, pós #metoo, assertivo, seguro, que deixa este velho Nokia sentindo-se a caminhar por um pasto e subindo em cupinzeiros procurando sinal para seu 2G. Tenho medo do aspecto da Jia Tolentino: filha de filipino com canadense, é uma oriental loira com pinta de assassina sexy num filme do Tarantino.
Caso lesse este texto, Jia certamente condenaria a última frase. Num dos ensaios ela levanta a questão: por que é que quando o livro de uma mulher é resenhado por um homem, o aspecto físico da autora volta e meia vem à baila? Machismo e feminismo são temas que perpassam várias páginas de “Falso espelho” e Jia consegue explicar meu comportamento ultrapassado fugindo de todas as armadilhas e lugares comuns das guerras culturais. (E quando porventura cai nas armadilhas, joga luz sobre elas, sempre analisando os próprios tropeços).
“Falso espelho” é um livro de ensaios sobre os nossos tempos, mas também uma autobiografia. Nascida com a internet e com a personalidade moldada em tempos de redes sociais, a autora tenta entender-se e ao mundo, simultaneamente: é como os antigos cientistas que inoculavam em si as vacinas que desenvolviam. Os anticorpos produzidos nesta experiência podem ajudar a curar nosso mundo doente. Eu não deveria ter medo da Jia Tolentino.
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Antonio Prata nasceu em São Paulo, em 1977. É escritor, cronista e roteirista.