Elvira Vigna, por André Conti
Editor fala sobre sua relação pessoal e profissional com a autora de KAFKIANAS
Um dos privilégios de ter convivido com a Elvira foi perceber o quanto ela falava como escrevia. Não na sintaxe, que nos livros era tortuosa e arisca, feita daquelas orações longas e labirínticas de POR ESCRITO (o que ela definia como “escrevo esquisito”), mas na maneira de pensar. Assim como nos livros, a Elvira falava como se você já soubesse o que ela ia dizer, então uma história que ela contava soava às vezes como um comentário e um complemento a um enredo que cabia ao interlocutor montar. Isso é bem evidente neste KAFKIANAS, onde conhecer as histórias que ela reconta amplia o efeito cômico e acentua o contraste entre a linguagem, aqui mais próxima de COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS, ágil e elástica, e a escrita e os temas de Kafka. Mas essa operação está também de certa forma em todos os narradores dela, uma recusa em dizer o óbvio, ou em dizer algo de forma óbvia, numa destilação do que se quer contar até o ponto em que o dito soa como um pensamento posterior a uma história que não conhecemos.
O efeito nos livros é fortíssimo: ao mesmo tempo que os romances giravam num eixo temático que ela mesma dizia ser bem fixo, inclusive brincando que apenas reescrevia o mesmo livro a cada lançamento, nessa operação as tramas ganhavam uma força mítica, e os relacionamentos que ela esmiuçava nos romances eram, pela força da linguagem, maiores do que os acontecimentos que os impulsionavam. É quase como se ela contasse uma segunda história, concomitante ou posterior a um livro que apenas conheceremos por essas entrelinhas. Nesse sentido, são livros exigentes, que pedem atenção ao leitor. Basta pensar no crime de DEIXEI ELE LÁ E VIM, que seria um romance policial não fosse o absoluto desinteresse da narrativa em encontrar o culpado, ou ainda no marido de NADA A DIZER, ao mesmo tempo peça central da obsessão da narradora de esmiuçar os acontecimentos recentes de seu casamento e um fantasma sem voz no romance.
Quando me contou que ia morrer, foi da mesma forma: disse como se eu já soubesse da doença e estivesse apenas recebendo um boletim dos últimos desenvolvimentos. A mancha é recidiva. Tenho quase setenta anos. Não quero visitas. É uma merda mesmo. Fim. Um telefonema curto, sem rodeios, com alguns detalhes do tratamento e a promessa de nos vermos em breve, o que não aconteceu. Nas ligações e e-mails seguintes, nenhuma menção à doença, apenas à duradoura repercussão do PUTAS, às tratativas para a republicação de A UM PASSO, romance dos anos 1990 que ela tinha como seu favorito, e às coisas do dia a dia (na época, eu era editor na Companhia das Letras, que publica seus romances). Muito ligada à família, Elvira gostava de falar dos filhos e genros, mencionados sempre com orgulho e carinho. Era um contraste ao jeito seco e nada sentimental, às frases diretas e duras, aos julgamentos implacáveis e ocasionalmente desprovidos de trato e tato. Sei que os filhos e amigos mais próximos recebiam o mesmo tratamento, mas era tocante o entusiasmo com que relatava a vida familiar.
Morávamos perto, e gostava de encontrá-la na praça de alimentação do Center 3, na avenida Paulista, às vezes com o Roberto, seu marido, e às vezes sozinha. Adotava um visual espartano, sempre de calça de abrigo cinza ou jeans e camiseta escura ou camisa de manga comprida. Tinha um rosto de linhas duras e uma aparência severa, de poucos amigos. Era de fato honesta e dura em suas críticas, e a sinceridade se prolongava em uma absoluta desobrigação de ser simpática ou de seguir os rituais de bajulação que ela percebia no meio literário. Atribuía em parte a essa incapacidade de sorrir “para as pessoas pra quem devia sorrir”, como disse em entrevista a Daniel Benevides, o que considerava a pouca atenção que seus livros recebiam na imprensa e em premiações. Embora se colocasse como uma outsider, se ressentia dos poucos convites a eventos literários e ficava num misto de tristeza e revolta quando não era indicada a prêmios, dada a segurança que tinha em relação à própria obra. A essas ausências, atribuía também o fato de ser “mulher, feminista e velha”, como declarou na mesma entrevista — a mim ela dizia que não aceitava convites para eventos em que fosse a única pessoa mais velha porque não queria ser “a cota do idoso”. Da mesma forma, não comunicou sua doença para não ser excluída de atividades profissionais.
A relação dúbia com a literatura brasileira se estendia para suas leituras. Não era incomum ouvi-la elogiando o livro de alguém de quem não gostava (“Fulano escreve bem, fazer o quê?”) ou criticando o livro de um amigo (“Beltrano é uma gracinha, mas o livro é uma porcaria”), ocasiões em que ela me parecia menos imune a uma certa pequenez do meio literário do que gostaria de acreditar. Acompanhava os lançamentos e lia os pares avidamente, quase que alheia à própria frustração com o mesmo circuito de jornais, festivais e prêmios que parecia boicotá-la. Após sua morte, fiquei impressionado com a quantidade de relatos de autores, iniciantes ou não, cujos livros, muitas vezes enviados às cegas, ela leu e comentou. E lembrei de como se irritou quando eu disse, em uma de nossas discussões, que ela era a autora injustiçada com mais livros publicados em uma grande editora no Brasil. Ela conciliava o desprezo pelos vícios e convenções do meio literário brasileiro com a certeza de que sua obra merecia mais atenção e espaço do que recebia nesse mesmo meio.
O primeiro livro dela em que trabalhei, como assistente, foi DEIXEI ELE LÁ E VIM, editado por Maria Emilia Bender, sua grande amiga e a primeira leitora de todos os seus romances a partir de O ASSASSINATO DO BEBÊ MARTÊ e mesmo quando já não era sua editora. Maria era uma defensora incansável dos livros de Elvira, e graças a ela também me tornei seu leitor. Havia uma densidade incomum em seus romances, um raro encontro de linguagem nova com força narrativa. Eram extraordinários quando descreviam o banal, numa recusa constante ao óbvio. Desinteressavam-se dos próprios motivos centrais e focavam-se nas margens, largando pontos grandes da trama em troca de observações miúdas tão reveladoras quanto oblíquas. Num estilo que ela descrevia como “hiper-realista”, e que muito devia às artes plásticas, seu outro assunto de vida, adensava essas miudezas e a partir delas embaralhava enredos e tirava o chão do leitor. Nada disso é retórico. Era uma operação minuciosa e deliberada, à qual ela própria atribuía a dificuldade de seus livros e também sua originalidade.
Fui editor de dois livros dela, POR ESCRITO e COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS. Foi uma relação igualmente difícil e próxima, de brigas e depois de uma amizade intensa e bonita, da qual guardo algumas das minhas melhores lembranças de trabalho. Começamos mal, com um atraso meu ao nosso primeiro encontro sobre o POR ESCRITO, num café na rua Cubatão. Ela podia ser intimidante, e eu certamente me intimidei, e a reunião não durou mais de vinte monossilábicos minutos, embora àquela altura já nos conhecêssemos havia alguns anos e fôssemos em alguma medida próximos. Nas semanas seguintes tivemos discussões sobre a promoção do livro, data de lançamento e divulgação. O processo era muitas vezes narrado em suas redes sociais, onde eu ocasionalmente encontrava, com espanto, críticas públicas a problemas que, na minha cabeça, podiam ser resolvidos em um simples telefonema. Em algum momento, me ofendi com uma dessas críticas e revidei, esperando um revide na mesma moeda e perdido em como trabalhar no livro, que era um romance extraordinário. Para minha surpresa, ela ficara genuinamente chateada com a resposta, e me sentindo ridículo com a minha reação grosseira, pedi desculpas. Depois de outra discussão, cujo motivo não me lembro, foi a vez de ela se desculpar. E assim seguimos. Até que ela ligou um dia e, rindo, disse que deveríamos ter uma pasta nos nossos programas de e-mail destinada a esses pedidos mútuos de desculpas.
POR ESCRITO era um acúmulo de ideias e temas dos outros livros, com os mesmos personagens normalmente secundários ocupando o centro da história. Um romance ambicioso que parecia também apontar caminhos novos para Elvira: mais fragmentado e radical na forma, ainda menos focado na trama, mais verborrágico (é o livro mais longo dela), quase uma versão exagerada dos anteriores, embora aqui e ali ele mudasse para um registro solto e diferente. A essa altura, nossos problemas haviam passado, e celebramos muito o segundo lugar do livro no Prêmio Oceanos. No dia da entrega, ela estava num vestido rosa, como que fantasiada para a ocasião. Reclamou um pouco de ser apenas um segundo lugar, mas ela própria riu da reclamação, como que reconhecendo a própria intransigência. Ela estava verdadeiramente feliz e, embora enxergasse ali todo o sistema que tanto criticava, o que não passou em branco nos comentários, ficou contente com o reconhecimento e orgulhosa pelo livro. Depois da cerimônia, nos encontramos no estacionamento e a achei um pouco mais ríspida que o normal. Impressão errada: ela chorou (rapidamente). Não por reverência ao prêmio, mas, como ela mesma disse, “porque hoje resolvi que mereço ficar orgulhosa de mim”. Disse também que estava terminando o novo romance e, antes que a situação ficasse emotiva demais, saiu à maneira dela, com pressa e acenando sem olhar para trás.
O próximo livro viria a ser COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS, que ela entregou tempos depois no café onde passamos a nos ver — na realidade um restaurante de pratos feitos ao lado da editora. Vínhamos nos encontrando com alguma regularidade, sempre nesse lugar. Depois da conversa, sentávamos no banco de um ponto de táxi ali ao lado e ela perguntava do trabalho, se estávamos bem de dinheiro em casa, contava das ideias para a própria editora, reclamava da falta de frilas, traçava planos para os livros e narrava as novidades da família. Não sei a partir de que ponto desse período ela soube da doença, mas não notei nenhuma mudança no seu comportamento. A rotina era a mesma: falávamos da vida e das coisas, e repentinamente ela levantava e ia embora acenando. Num desses encontros, nos vimos pela última vez, mas não sei dizer quando.
COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS era um romance diferente dos demais. Estavam ali seus temas de sempre: um ato de violência, personagens à margem, laços familiares incomuns, uma sociedade amarga e caindo aos pedaços, representada na paralisia da editora onde um dos protagonistas trabalha. Mas a linguagem era outra. Não irreconhecível, porque era evidentemente um romance da Elvira. Mais ainda, é como se os outros livros tivessem sido reduzidos a uma forma essencial, sintética e circular. A impressão, lendo o manuscrito impresso de uma sentada só, era de estar diante de algo importante. Ela própria tinha consciência de que o livro era incomum, e esperava uma reação igualmente incomum, fosse positiva ou não. Sabia que os leitores não cariam indiferentes, e gosto de pensar que, em meio a uma vida sem concessões, resolveu abrir as portas de sua literatura a um público maior. Fez isso sem baratear a própria obra, pelo contrário: radicalizou o método, não abriu mão de escrever “esquisito”, seguiu opaca e arredia, mas o fez de maneira generosa e convidativa, ou pelo menos me pareceu. O livro foi um sucesso e ela não escondia a satisfação em vê-lo na imprensa e na mão de leitores, sobretudo leitores novos. De repente, as coisas finalmente pareciam ter entrado num trilho, e então ela morreu.
Quando circulou a notícia da morte, essa mesma generosidade apareceu nos relatos de leitores, autores e amigos. Davam conta de uma amiga leal, de uma leitora sincera, de alguém que ajudou como pôde iniciantes e que marcou dezenas de vidas. A minha certamente. Todo o processo de trabalho no PUTAS foi um dos mais prazerosos, divertidos e recompensadores que conheci, de uma proximidade verdadeira, que muito me emocionava, e da qual tinha imenso orgulho. Não foi uma relação de todo fácil ao longo dos mais de dez anos em que nos conhecemos, mas nos entendemos nos nossos termos e carrego com afeto e carinho a lembrança dessa convivência. KAFKIANAS é fruto também dessa generosidade. Ela foi a primeira pessoa para quem telefonei quando anunciamos a Todavia. Tive a impressão de que não estava bem no telefonema, mas era um dia de euforia e acabei não perguntando. No dia seguinte, ela mandou um e-mail curto e lindíssimo. Em meio aos assuntos que vínhamos discutindo nos últimos tempos, falava que o KAFKIANAS já estava fechado com outra editora (partindo como sempre do princípio de que eu sabia do livro, o que não era o caso), mas que seria nosso se quiséssemos. Respondi no dia seguinte dizendo que sim e agradecendo o gesto — foi o primeiro livro enviado à editora que nascera no dia anterior. Seguimos trocando alguns e-mails, ficamos de nos encontrar para falar da edição, uma ou outra conversa sem relevância. E então ela parou de responder. Torci intensamente para que estivesse brava comigo, que tivesse cado ofendida com algum dos bilhetes. Que estivéssemos de novo anos atrás, dois amigos às turras com alguma coisa desimportante, e que esqueceríamos no próximo pedido de desculpas. Que ela ligasse dizendo que estava puta. Qualquer sinal. Um mês depois recebi um e-mail dela, mas quem respondia era o Roberto, com notícias sobre a internação. Pouco tempo depois, perdíamos uma de nossas maiores escritoras e, eu e tantos outros, uma amiga.
Demorei alguns meses para reler este livro. Foi um reencontro feliz. Ela recontava as histórias de Kafka da mesma maneira que a vi contando sobre um filme de que tinha gostado ou uma exposição que tinha visto. Um jeito meio duro e esquisito, que parte do princípio de que você sabe do que ela está falando. Tenho essa imagem forte de nós dois num ponto de táxi olhando para a rua, um encontro breve, alguma conversa sobre a dificuldade em emitir uma nota fiscal ou receber por um frila. Tivemos um acesso de riso, não sei por quê. Ela levantou e foi embora meio sem se despedir, como fazia, mas deu tempo de dizer: hoje a gente termina por aqui. O problema de escrever sobre as pessoas, como disse o Holden Caulfield, é que a gente passa a sentir uma falta desgraçada delas.
André Conti nasceu em 1981. É jornalista, tradutor e editor na Todavia.
Dia 28 de setembro (sexta-feira), reunimos a historiadora de arte Carolina Vigna e os editores André Conti e Mirna Queiroz para um bate-papo sobre a vida e a obra de Elvira Vigna, às 19h, na Cerverbaria. Mais informações aqui.