Diego Rivera e a indústria de Detroit

Por Joshua B. Freeman

Em trecho de MASTODONTES, Joshua B. Freeman recupera a história da série de murais "Indústria de Detroit", de Diego Rivera

 

A indústria automobilística fez a população de Detroit explodir. À medida que os operários chegavam para trabalhar, seu número de habitantes mais que triplicou, passando de 466 mil em 1910 para 1,72 milhão em 1930. A cidade também se espalhou. Os capitães da indústria recém-enriquecidos construíram suas mansões nos subúrbios à beira do lago e assumiram o compromisso de dotar a cidade das instituições cívicas e culturais que marcam os centros de poder. Entre elas estava o Instituto de Artes de Detroit, de propriedade municipal, mas supervisionado por um pequeno conselho diretor, encabeçado por Edsel Ford e que contava com Albert Kahn e Charles T. Fisher, da Fisher Body. Em 1930, o ambicioso diretor do museu, William Valentiner, encarregou Diego Rivera de pintar dois murais no pátio de seu novo prédio. Na época, o artista, já bastante conhecido nos círculos internacionais, estava trabalhando em seus primeiros murais nos Estados Unidos. Valentiner convenceu Edsel Ford, a quem orientava em história da arte, a financiar o projeto.

Quando Rivera e sua esposa Frida Kahlo chegaram a Detroit, em abril de 1932, era um lugar muito diferente de quando Sheeler tirara suas fotografias, cinco anos antes. A Depressão a atingira duramente, havia desemprego em massa na indústria automobilística e grave privação nos bairros operários. Os movimentos radicais haviam engrossado, exigindo empregos, ajuda e sindicalização. Em 7 de março de 1932, os guardas da Ford e a polícia de Dearborn abriram fogo contra uma marcha de trabalhadores desempregados e seus apoiadores, matando quatro pessoas e ferindo muitas outras. O cortejo fúnebre pelos mortos atraiu 70 mil manifestantes.

Embora marxista assumido e eventualmente comunista, Rivera (e Kahlo) parecia alheio ao feroz conflito de classes. Ele ficou fascinado por Henry Ford e pelo império industrial que havia construído. “Minha paixão de infância por brinquedos mecânicos”, escreveu mais tarde, “fora transformada num deleite com o maquinário por seu próprio significado para o homem — sua autorrealização e libertação do trabalho penoso e da pobreza.” Rivera admirava as fotografias de equipamentos industriais que o pai de Kahlo, um proeminente fotógrafo mexicano, havia tirado. O artista percorreu várias fábricas da área de Detroit, mas, como para muitos outros, foi o Rouge que capturou sua imaginação e se tornou a peça central de sua obra. Rivera ficou tão entusiasmado que Valentiner e Edsel Ford concordaram em ampliar a encomenda para cobrir todas as quatro paredes do pátio do museu (com o dobro dos honorários originais) com 27 painéis que propiciavam espaço para um enorme programa pictórico, o qual, de acordo com o desejo de Edsel, incluía não somente o Rouge, mas também cenas de outras indústrias importantes do lugar.

Rivera terminou os murais em meados de março de 1933, o ponto mais baixo da Grande Depressão. Enquanto ele e seus assistentes trabalhavam nas obras em cima de pesados andaimes, grupos de visitantes observavam, de forma parecida aos turistas do River Rouge que Rivera incorporou em um de seus painéis. Mesmo antes de serem revelados ao público, os murais foram objeto de ataques de todo tipo. Mas eles se mostraram imensamente populares — milhares de pessoas foram vê-los na primeira semana —, e desde então são uma das principais atrações de Detroit.

A Indústria de Detroit é um dos triunfos da arte do século xx, a representação visual mais completa que temos do sistema fabril. Os dois painéis maiores retratam com notável compressão visual o complexo processo de fabricação de automóveis no Rouge. O painel da parede norte mostra a produção de caixas de transmissão e motores V8 (na época, recém-lançados pela Ford), desde o alto-forno até a fundição, perfuração e montagem. A parede sul retrata a estampagem e o acabamento de carrocerias de aço e a linha de montagem final. Visualmente denso, com esteiras transportadoras, dutos, guindastes e varandas serpenteando pelos painéis, o Rouge de Rivera, ao contrário daquele de Bourke-White ou Sheeler, fervilha de gente: operários trabalhando, supervisores e turistas observando, e Henry e Edsel Ford, Valentiner, o próprio Rivera, e — como se não bastasse — Dick Tracy, todos a postos.

Por mais notáveis que sejam os painéis do Rouge, são apenas uma parte de um conjunto maior, épico em sua extensão conceitual e visual. Outros retratam o milagre da medicina moderna, os lados construtivos e destrutivos das indústrias aeronáutica e química, figuras enormes que representam cada uma das raças, frutas e vegetais que ilustram a generosidade da terra e até a própria Terra, com suas estratificações, fósseis e um feto dentro dela. Enquanto a maioria dos trabalhadores do Rouge tem rosto e corpo de americanos de origem europeia ou africana, outras figuras, incluindo dois notáveis retratos gigantes de mulheres nuas que representam a generosidade da agricultura (nos cantos superiores da parede leste), são indígenas mexicanos no rosto e no corpo, uma fusão de dois países e duas culturas na visão da modernidade de Rivera.

O trabalho humano e as máquinas dominam o mural de Rivera. O tributo que o fordismo cobra dos trabalhadores é evidente na predela de um painel onde corpos cansados caminham por um viaduto a caminho de casa. Mas, em sua totalidade, o mural celebra a força do homem e da máquina, o poder tomado à natureza pela humanidade e empregado na fábrica gigante.

Somente em um detalhe minúsculo aparece uma crítica explícita à Ford, um chapéu usado por um trabalhador onde se lê “Queremos”, sem dúvida uma referência ao movimento sindical que então ganhava poder em Detroit contra a feroz resistência da empresa. Rivera, no entanto, não pôde conter seu desdém pelo capital (embora não pelos Ford, pai e filho, de cuja companhia parecia gostar de verdade). Assim que terminou Indústria de Detroit, ele foi para Nova York para criar um mural no recém-concluído Rockefeller Center. Sua recusa em remover os retratos de Lênin e de John D. Rockefeller Jr. com uma bebida na mão e mulheres por perto levou os Rockefeller a destruir a obra.

Rivera também foi contratado para criar um mural intitulado Forja e fundição para a mostra da General Motors projetada por Kahn para a próxima Exposição Internacional Século do Progresso, em Chicago. O arquiteto, que inicialmente não se entusiasmara com a encomenda dos murais de Rivera no Instituto de Arte, passara a defendê-los com veemência. Mas, depois da controvérsia do Rockefeller Center, a General Motors mandou que demitisse Rivera. Kahn prometeu ao artista “fazer o possível para obter permissão para prosseguir”, mas a empresa não cedeu. Rivera disse à imprensa: “Isso é um golpe para mim. Eu queria pintar homens e máquinas”. Voltando ao México, ele praticamente abandonou o tema. O fordismo e a fábrica gigante perderam assim seu maior cronista.

Hoje, de forma ao mesmo tempo irônica e reveladora, é provável que a imagem mais vista do Rouge na alta cultura não seja os murais de Rivera nem o trabalho de Sheeler, mas uma pintura de Frida Kahlo. Quando foi com ele a Detroit, Kahlo era quase completamente desconhecida como artista, mas, enquanto esteve na cidade, produziu uma série de obras que acabaram por ofuscar o mural de Rivera no mundo da arte global, assim como sua reputação geral acabou por ofuscar a dele. Em sua obra mais conhecida do período, a extraordinária pintura Henry Ford Hospital, o Rouge aparece como um fundo visual e tópico da imagem central de Kahlo sangrando deitada na cama após o aborto que sofreu em Detroit (provavelmente induzido). Entre outras coisas, sua pintura é uma premonição da mudança do interesse cultural na América do Norte e na Europa, que se afastou da indústria e se voltou para preocupações interiores intensamente pessoais.

 

Joshua B. Freeman é professor de História no Queens College e no Graduate Center da City University of New York. É autor de diversos artigos e livros sobre industrialização, classe trabalhadora e capitalismo global. Entre eles, Mastodontes, lançado este mês pela todavia.  


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