"Dia das mães", de Antônio Maria

Por Antônio Maria

Neste post, leia na íntegra o texto presente em VENTO VADIO: AS CRÔNICAS DE ANTÔNIO MARIA. De quebra, assista à leitura da atriz e dubladora Priscila Amorim.

 

"Gosto muito de você. É uma confissão muito séria, esta. De amor, pelo menos, é a mais direita."

Este vídeo faz parte de uma série dedicada ao autor, disponível no nosso YouTube. Abaixo, leia o texto na íntegra. 

 

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Todos cantam suas mães, também vou cantar a minha. Nunca fui de cantar ninguém, mas minha mãe, com licença, tenho direito.

É uma mãe melhor que as outras, que faz empadas de camarão e pastéis de carne melhor que as outras. Para mim, ao menos, foi sempre melhor que as outras. São tantas, as mães dos outros, e a minha uma só! Pois bem, sozinha, sendo as outras tantas, me quis sempre mais bem do que todas as outras juntas.

Sou mais velho que ela. Quando ela nasceu, eu tinha já oito anos. Eu a vi chorando muito, com o rosto dentro das mãos. Minha irmã Conceição tinha acabado de morrer. Eu fui por detrás, covardemente, beijei-lhe os ombros e os cabelos. Era o meu primeiro gesto de amor sentido, consciente e, dele, e nele, nasceu minha mãe, em 1929, numa casa térrea da avenida Riachuelo, com oitão livre para a rua da Saudade. Dali por diante, ficou mudamente entendido que, além de eu ser filho dela, ela era também minha filha.

O velho Rodolpho (que lhe respeitem o “ph”) de Albuquerque Araújo, pai dela e, por conseguinte, meu neto, foi, até sua morte, o homem mais respeitado de Pernambuco. Dos usineiros e donos de terras era o único, na realidade, culto e liberal. Os Azevedo (da Catende), os Pessoa de Queiroz (de Santa Teresinha), os Siqueira Santos (da Estreliana), os Coimbra (da Central Barreiros) e os Colaço (da Caxangá) olhavam para ele de baixo para cima. Tonico Ferreira, de Pirangy, que morreu antes do desgosto de ser meu sogro, 

homem bravo, lúcido, de exuberante vitalidade, ia sempre se assossegar nos terraços de Cachoeira Lisa. Olegário Mariano, que era mocinho, queria-o quase tanto quanto ao pai, Zé Mariano. Pois bem, foi esse homem que à minha mãe ensinou francês, latim e bondade.

Nunca fez (minha mãe) dengues comigo. Bondades, todas. Tratou-me de impaludismo, de dor de garganta e de furunculoses. No tempo certo, me deu o cavalo, a bicicleta, e depois, já pobre, completou o dinheiro do meu primeiro automóvel. Surra mesmo, deu-me uma. Não tinha razão, mas devia estar tão só por dentro que me bateu. Foi fácil, não só por ser permitido aos pais bater nos filhos, como também por ser ela, na época, maior que eu. Esquecer não esqueci, mas perdoei e nunca bati nela, mesmo depois que fiquei maior.

Sempre lhe dei muito trabalho. De manhã, para sair da cama e ir para o colégio. De noite, para sair da calçada, lavar os pés e ir deitar. Na mesa, almoço e jantar, para comer um pouco menos. Para estudar, para aprender piano (nunca aprendi), para fazer os deveres de aritmética. Para não beber vinho, já aos dez anos. Para estar em casa nas aulas de francês, de Mlle. Strobel. Para tomar óleo de rícino, ao primeiro sinal da febre terçã. Depois, quando fui ficando rapaz, para não andar com Fernando Lobo, na companhia dramática de Fernando Lobo. Para não viver metido no Cabaré Imperial, com o hoje arquiteto Gauss Estelita. Para não dormir fora, mesmo que fosse só. Para não beber, para não brigar, para não sofrer.

Quando eu ia preso e só chegava em casa no dia seguinte, vinha, com jeito, afeto, receio, curiosidade, e perguntava:

— Onde passou a noite?

— Com uma francesa… — respondia eu, para que ela não soubesse que, mesmo sendo meninote, ninguém estava livre da polícia covarde do Recife, chefiada por Etelvino Lins e ministrada por dois lorpas formados em direito, de nomes Fábio Correia e João Roma. Minha francesa tinha sido o chão urinado de uma cela, em companhia de ladrões e assassinos.

Dei-lhe muito cuidado, em rapazinho. Dou-lhe ainda, ao pensamento, quando imagina que me possam fazer uma malvadez. Mas nunca mais lhe levei, pessoalmente, as minhas aflições. Quando a visito, levo-lhe minha coragem, minha possível alegria, meu coração adolescente de filho mais velho que a mãe, que já viu mais coisas que a mãe, que já teve mais esperanças que a mãe. De homem provado pelo ódio e pelo amor, amargos ambos, cujo gesto encoraja e a palavra descansa.

As lembranças se agitam, dentro e fora de mim, neste quarto onde escrevo. Paisagens, homens, vozes, flores, mugidos, canaviais, rios, moendas, cana-caiana, todas as canas, homens no eito, roçados de mandioca, casas de farinha, cantigas. E o trem passando, ao longe, com as janelas iluminadas. O som, o cheiro, as luzes e o tamanho do trem passando. Lembranças. É preciso contê-las. É necessário contê-las.

Então, mãe, ao fim de tudo, um recado. Gosto muito de você. É uma confissão muito séria, esta. De amor, pelo menos, é a mais direita. E só a fiz, até hoje, a duas pessoas. Você e outra. Gosto muito de você. Muito.

Nota do cronista: Este cronista, pessoa muito desorganizada, principalmente como filho, pede a você, leitor, que recorte este escrito, coloque-o em um envelope e mande para Diva Araújo de Moraes — Rua Amapá, 72, Espinheiro, Recife.

Última Hora, 13/05/1961


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