Bom Crioulo

Leia trechos da introdução e do posfácio assinados por James N. Green e Regina Dalcastagnè

Publicado em 1895, Bom Crioulo foi objeto da mais virulenta oposição de sua época ao retratar dois integrantes da Marinha ao mostrar seus protagonistas — um negro e um branco— em uma relação homossexual. Apesar do barulho que este clássico do romance naturalista brasileiro causou, a morte precoce do autor aos 29 anos fez com que o livro se tornasse durante muitas décadas uma nota de rodapé na história da literatura: reeditado na década de 1930, foi acusado de ser uma obra "comunista" pela Marinha e teve sua publicação proibida pelo Estado Novo, voltando a circular normalmente apenas a partir dos anos 1950.

Leia abaixo trechos da introdução da nossa edição assinada pelo crítico James N. Green e do posfácio escrito pela professora de literatura Regina Dalcastagnè.

 

Introdução, por James N. Green

Adolfo Caminha nunca poderia imaginar que seu romance Bom Crioulo, publicado em 1895 e escrito quando o autor tinha apenas 27 anos, seria considerado um clássico da literatura brasileira.

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Os detratores de Caminha ficaram horrorizados com o assunto do romance: a relação sexual e romântica entre Amaro, um escravo foragido que entra para a Marinha brasileira, e Aleixo, um grumete que faz parte da mesma tripulação. Ainda que a primeira edição tenha vendido bem (5 mil exemplares), certamente por causa do escândalo envolvendo seu conteúdo, Caminha não chegou a obter fama e fortuna com seu trabalho. Morreu dois anos depois de tuberculose, deixando uma obra modesta de quatro romances, dois livros de contos, uma coletânea de ensaios, um livro de poemas e dois trabalhos não finalizados. Também deixou Isabel, sua esposa informal, e duas jovens filhas, Belkiss e Aglaís. O livro e seu autor caíram no esquecimento.

Até que, mais de um século depois, ativistas lgbt e estudiosos acadêmicos passaram a considerar Bom Crioulo como o primeiro romance brasileiro com um negro como protagonista que também trata aberta e explicitamente da homossexualidade masculina. Tem sido publicado em várias edições em português, assim como em inglês, espanhol, alemão, francês, italiano e turco. A importância que lhe vem sendo dada chegou inclusive ao vestibular brasileiro, aparecendo o livro numa questão.

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Além de insistir que o autor permanecesse distanciado dos assuntos de seu romance e escrevesse de forma desinteressada e impessoal, os proponentes do naturalismo consideravam que os seres humanos eram meros animais, cujo caráter e destino eram predeterminados pela natureza e estavam fora de seu controle. A tarefa principal do escritor, portanto, era capturar e analisar o comportamento humano, o qual acreditavam que fosse influenciado por emoções incontroláveis, limitado pela hereditariedade e moldado pelo entorno. Esses elementos, primeiramente desenvolvidos por Caminha em A normalista, formam a estrutura básica com que, em Bom Crioulo, ele conta a história de amor do marinheiro pelo jovem grumete. Amaro é movido por sua natureza inata, e a sexualidade é uma parte irreprimível de seu ser. Seus instintos animalescos, que dominam seu amor e desejo por Aleixo, e sua inabilidade para controlar o destino acabam o arrastando para a tragédia. 

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As cenas de homoerotismo explícito, que tornaram o romance tão novo e pioneiro para uma produção literária de 1895, geraram críticas agressivas dos guardiões da cultura no Rio de Janeiro. Caminha respondeu a seus detratores com o artigo “Um livro condenado”, que apareceu muitos meses depois da publicação de Bom Crioulo, em 1896, no segundo número de A Nova Revista, um periódico literário que ele tinha acabado de fundar. “Foi um verdadeiro escândalo o ato inquisitorial da crítica, talvez o maior escândalo do ano passado”, lamentou. 

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É preciso levar em consideração que em 1895, ano em que Bom Crioulo foi publicado no Rio de Janeiro, o eminente escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde foi condenado por “indecência flagrante” em Londres e sentenciado a dois anos de trabalhos forçados por ter se envolvido numa relação de “amor que não ousa dizer seu nome”. 

A homossexualidade não era de forma nenhuma uma prática social aceita na Europa e nos Estados Unidos, o que dizer no Brasil. A tradicional moral católica considera a sodomia uma abominação. Nesse sentido, as descrições de Caminha da relação sexual entre Amaro e Aleixo refletem a moral e os preconceitos que circulavam entre intelectuais de seu tempo e repetem a antiga noção cristã de que a homossexualidade é um ato contra a natureza. Ainda assim, como mostra o estudioso de literatura Anselmo Peres Alós, “Caminha abre espaço para que uma subjetividade homossexual, ainda que precária, ganhe legitimidade ao se instaurar não como ‘paixão doentia e avassaladora’, mas sim como mais uma dentre as tantas paixões humanas”.

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Um romance ambíguo e desafiador (posfácio), por Regina Dalcastagnè*

Com o passar do tempo, obras que surpreenderam pela originalidade costumam perder seu impacto, seja porque suas conquistas técnicas ou suas escolhas repertoriais já foram incorporadas e reinterpretadas pelos produtores literários, seja porque a surpresa do diferente costuma se esvaziar após sua própria execução. Não é o caso deste livro. Lançado em 1895, com muito escândalo, ele continua, de algum modo, sendo uma perturbação em nosso cenário cultural. Reivindicado atualmente como o primeiro romance brasileiro a trazer a público um protagonista homossexual, Bom Crioulo chama a atenção ainda para uma série de outras ausências em nossa literatura — não apenas a do século XIX, mas também a de hoje, que, de um modo geral, não dá guarida para personagens como Amaro.

Afinal, além de gay, ele é negro e trabalhador braçal. Juntam-se aí três características que, isoladas, já seriam suficientes para torná-lo invisível nos discursos predominantes que circulam pelos mais variados espaços sociais. No discurso literário, uma personagem com essas marcas de classe, raça e orientação sexual poderia até compor o pano de fundo de alguma narrativa, como representante de uma “diversidade” que é necessário reconhecer. De resto, o centro da cena, lá onde as coisas acontecem de fato, ainda hoje permanece ocupado por homens e mulheres brancos, heterossexuais, de classe média ou da elite econômica, vinculados ao universo intelectual. Nos romances brasileiros contemporâneos, em especial aqueles publicados pelas editoras mais prestigiadas e que obtêm maior impacto entre o público e a crítica, são raros os protagonistas negros, raros os protagonistas homossexuais, raros os protagonistas trabalhadores. Por isso mesmo, o estranhamento que o leitor sente ao ler o livro permanece, mais de cem anos depois de ter sido escrito.

Temos aí o indicador de um problema social — em que a experiência de vida de alguns grupos é considerada menos valiosa e, consequentemente, excluída dos espaços de construção do discurso — mas também um tipo de empobrecimento estético. Ao interromper suas atividades e abrir um romance, o leitor busca, de alguma maneira, se conectar a outras existências. Pode querer encontrar ali alguém como ele, em situações que viverá um dia ou que espera jamais viver. Mas pode ainda querer entender o que é ser o outro, morar em terras longínquas, falar uma língua estranha, ter outro sexo, outra cor, outras tradições, um modo diferente de enxergar o mundo. O romance, enquanto gênero, promete tudo isso a seus leitores — que podem ser leitoras, que têm cores, idades, crenças, instrução, contas bancárias, perspectivas de vida muito diferentes entre si.

Reconhecer-se em uma representação artística, ou reconhecer o outro dentro dela, faz parte de um processo de legitimação de identidades, ainda que elas sejam múltiplas. Daí a necessidade da inserção de diferentes perspectivas sociais nessas construções.

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Ao dar vazão a outras possibilidades de apreensão do mundo social e a outros modos de viver a sexualidade, Adolfo Caminha instaura a ambiguidade em sua narrativa. Graças a essa ambiguidade, Bom Crioulo não é apenas um documento de época ou uma correta aplicação, no Brasil, das teorias do naturalismo francês. É um romance que, sem se querer “atemporal” (qualidade que, a rigor, só seria conquistada por uma obra que negasse aquilo que possui de mais valioso, seu caráter humano), é capaz de desafiar seus leitores mais de um século depois de ter sido escrito. E que, por isso mesmo, deve ser lido não com a condescendência destinada aos velhos textos do passado, nem com o enfado ao qual se relegam as tarefas escolares, mas com o rigor crítico e o interesse que merecem as obras que ainda falam a nós.

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*Este texto apareceu originalmente na revista Veredas (n. 24, 2015).

 
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