Trecho do livro
Dias e dias correram. A bordo todos o estimavam como na fortaleza, e a primeira vez que o viram nu, uma bela manhã, depois da baldeação, refestelando-se num banho salgado — foi um clamor! Não havia osso naquele corpo de gigante: o peito largo e rijo, os braços, o ventre, os quadris, as pernas, formavam um conjunto respeitável de músculos, dando uma ideia de força física sobre-humana, dominando a maruja, que sorria boquiaberta diante do negro. Desde então Bom Crioulo passou a ser considerado um “homem perigoso”, exercendo uma influência decisiva no espírito daquela gente, impondo-se incondicionalmente, absolutamente, como o braço mai [leia mais]
Dias e dias correram. A bordo todos o estimavam como na fortaleza, e a primeira vez que o viram nu, uma bela manhã, depois da baldeação, refestelando-se num banho salgado — foi um clamor! Não havia osso naquele corpo de gigante: o peito largo e rijo, os braços, o ventre, os quadris, as pernas, formavam um conjunto respeitável de músculos, dando uma ideia de força física sobre-humana, dominando a maruja, que sorria boquiaberta diante do negro. Desde então Bom Crioulo passou a ser considerado um “homem perigoso”, exercendo uma influência decisiva no espírito daquela gente, impondo-se incondicionalmente, absolutamente, como o braço mais forte, o peito mais robusto de bordo. Os grandes pesos era ele quem levantava, para tudo aí vinha Bom Crioulo com o seu pulso de ferro, com a sua força de oitenta quilos, mostrar como se alava um braço grande, como se abafava uma vela em temporal, como se trabalhava com gosto!
Entretanto, o seu nome ia ganhando fama em todos os navios. — Um pedaço de bruto, aquele Bom Crioulo! diziam os marinheiros. — Um animal inteiro é o que ele era!
Tinha um forte desejo ainda: suspirava por embarcar em certo navio, cujo comandante, um fidalgo, dizia-se amigo de todo marinheiro robusto; excelente educador da mocidade, perfeito cavalheiro no trato ameno e severo.
Bom Crioulo conhecia-o de vista somente e ficara simpatizando imensamente com ele. Demais, o comandante Albuquerque recompensava os serviços de sua gente, não se negava a promover os seus afeiçoados. Isso de se dizer que preferia um sexo a outro nas relações amorosas podia ser uma calúnia como tantas que se inventam por aí… Ele, Bom Crioulo, não tinha nada que ver com isso. Era uma questão à parte, que diabo! ninguém está livre de um vício.
Mas, anunciou-se a viagem da corveta, e lá Bom Crioulo deixou o cruzador para seguir seu novo destino.
Contava então cerca de trinta anos e trazia gola de marinheiro de segunda classe. Por sua vontade não sairia mais barra fora: em dez anos viajara quase o mundo inteiro, arriscando a vida cinquenta vezes, sacrificando-se inutilmente. — Afinal a gente aborrece… Um pobre marinheiro trabalha como uma besta, de sol a sol, passa noites acordado, atura desaforo de todo mundo, sem proveito, sem o menor proveito! O verdadeiro é levar a vida “na flauta”…
Nessa viagem Bom Crioulo não foi mais feliz que nas outras. Nomeado gajeiro de proa, espécie de fiscal do mastro do traquete, a princípio dera conta irrepreensivelmente de suas obrigações e podia-se ver o asseio e a boa ordem que reinavam
ali, desde a borla do tope té embaixo à chapa das malaguetas. Fazia gosto a presteza com que se efetuavam as manobras. A faina corria sempre na melhor ordem, livre de acidentes, como se todo o mastro fosse uma grande máquina movida a vapor, desafiando a gente dos outros mastros.
Agora, porém, de torna-viagem, as cousas tinham mudado. O traquete era um dos últimos a estar pronto, havia sempre um obstáculo, uma dificuldade: era um cabo que “pegava”, um “andarivelo” que se partia ou uma cousa que faltava…
— Anda com isso! bradava o oficial do quarto já impaciente.
E só depois de muito tempo é que Bom Crioulo anunciava lá de cima do mastaréu, com a sua voz estragada:
— Pronto!
Diziam uns que a cachaça estava deitando a perder “o negro”; outros, porém, insinuavam que Bom Crioulo tornara-se assim, esquecido e indiferente, dês que “se metera” com o Aleixo, o tal grumete, o belo Marinheirito de olhos azuis, que embarcara no Sul. — O ladrão do negro estava mesmo ficando sem-vergonha! E não lhe fossem fazer recriminações, dar conselhos… Era muito homem para esmagar um!
O próprio comandante já sabia daquela amizade escandalosa com o pequeno. Fingia-se indiferente, como se nada soubesse, mas conhecia-se-lhe no olhar certa prevenção de quem deseja surpreender em flagrante…
Os oficiais comentavam baixinho o fato e muita vez riam maliciosamente na praça-d’armas entre copos de limonada.
Tudo isso, porém, não passava de suspeitas, e Bom Crioulo, com o seu todo abrutalhado, uma grande pinta de sangue no olho esquerdo, o rosto largo de um prognatismo evidente, não se incomodava com o juízo dos outros. — Não lho dissessem na cara, porque então o negócio era feio… A chibata fizera-se para o marinheiro: apanhava até morrer, como um animal teimoso, mas havia de mostrar o que é ser homem!
Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um ímã.