Boas Festas

Por José Falero

Neste post, leia um trecho de "Boas Festas", crônica de José Falero que integra o livro MAS EM QUE MUNDO TU VIVE?.

 

Na última segunda, 23 de dezembro, saí para refazer a minha certidão de nascimento, porque tinha perdido a primeira via. Era um compromisso que eu vinha adiando por falta de grana. E também deve ter sido por falta de grana que boa parte da população da Lomba do Pinheiro não fez as compras de Natal com antecedência, deixando para ir ao Centro justamente naquela segunda. Resultado: ônibus insanamente lotado.

Ônibus insanamente lotado num dia insanamente quente. Um verdadeiro forno com um monte de pessoas estressadas amontoadas umas por cima das outras. Ar-condicionado? Esquece. Café de louco não leva açúcar. Mas, como praticamente todos os coletivos da cidade, também aquele apresentava, no para-brisa, um cartaz padronizado com a seguinte mensagem: “boas festas”. E eis que, colocados ali pela mesma empresa que se nega a fornecer condições de transporte minimamente dignas para poder lucrar o máximo possível, os dizeres, direcionados aos usuários do coletivo, soavam pura e simplesmente como piada de extremo mau gosto e inacreditável desplante. Quase dá para imaginar os empresários rindo e mordendo a língua marotamente logo após conceberem a ideia:

— Bah, e se a gente colocar “boas festas” no para-brisa dos ônibus? Essa vai ser boa!

O leitor duvida de tamanha cretinice? Duvida que se possa ter tamanho desprezo por pobres? Porque se duvida, recomendo, então, que pesquise como foi que o Boris Casoy reagiu quando dois garis apareceram desejando felicidades na vinheta de fim de ano do Jornal da Band, há uma década. Sem saber que ainda estava no ar, o então apresentador do telejornal disse assim, aos risos:

— Que merda! Dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras! Dois lixeiros! O mais baixo da escala do trabalho!

Pois é. Isso existe. Então, por favor, não me peçam para descartar a hipótese de que o “boas-festas” no para-brisa dos ônibus seja exatamente o que parece: um deboche proposital, um insulto premeditado à classe trabalhadora que abarrota os coletivos da capital todo santo dia.

Já o “boas-festas” que ganhei da atendente do cartório tinha gosto de nada com chuchu. Surgiu de súbito no meio do breve diálogo que tivemos.

— Infelizmente, o senhor não foi registrado neste cartório, e sim no da primeira zona. Só poderá obter a sua certidão lá.

— Mas a minha mãe disse que eu fui registrado aqui.

— Então ela se enganou. Boas festas. Próximo!

Confesso que tive vontade de chorar. Não pelo “boas-festas” insípido da moça, claro, mas pelo longo caminho que se materializava diante de mim: até então impensada, de repente fazia-se necessária a ida a pé da Venâncio até a Comendador Coruja debaixo de sol forte. Fui pela Lima e Silva, para aumentar as probabilidades de, por acaso, passar por um bar. E dei sorte: cinco minutos depois, já estava empinando um latão.

Vindo na direção oposta, um homem pingando suor trazia uma bicicleta no ombro. Era uma bicicleta recém-comprada, reparei logo, pelo fato de as rodas estarem embaladas em sacolas das Lojas Americanas. Por coincidência, paramos os dois para descansar à sombra da mesma árvore, ao mesmo tempo, como se tivéssemos combinado um encontro ali.

— Aí, irmão: vai?

— Pô, era bem o que eu precisava!

Ele escorou a bicicleta no tronco da árvore, pegou o latão da minha mão e tomou dois ou três goles de uma vez.

— Ah! Bem gelada!

— E essa bike aí?

— Pois é. Faz horas que tô prometendo pro bacura. Ele nunca teve uma. Quero só ver qual vai ser o motivo pra me atazanar agora. E tu? Indo pegar o presente da mulher?

— Antes fosse. Tô indo ver a mão da minha certidão lá na Comendador Coruja. E é chão!

— Mas e eu, que vou até a Alameda?

— Puta merda! E essa lua, ainda, pra ajudar…

— Pois é. Não deixaram subir no bonde com a bike. Tu acredita? Olha aqui, o bagulho nem é tão grande, nem ocupa tanto espaço. Além disso, o bonde volta vazio pra vila a essa hora. Quer dizer, o que custava deixar eu subir? Sacanagem!

— Sacanagem da grossa! E ainda colocam “boas festas” no para-brisa.

— Pois é. É foda. Mas é o seguinte, mano: vou nessa. Valeu pelo gelo, sangue bom! Boas festas pra tu e pra tua família. Certinho?

Quando uma pessoa dá um “boas-festas” não só para mim, mas também para a minha família, sempre fico pensando comigo mesmo que essa pessoa deve dar valor à própria família. Porque quase todas as palavras que saem da nossa boca, já saem dando meia-volta, procurando os nossos próprios ouvidos. No fundo, a maior parte do que dizemos aos outros, dizemos é para nos escutarmos dizendo aquilo. Diálogos — diálogos mesmo — são menos frequentes do que parecem. Sim, aquele homem devia dar valor à própria família. Tanto que lá ia ele, despencando-se do Centro até a Alameda a pé, naquele sol, para não deixar o filho sem presente de Natal.

Lembrei de quando ganhei minha primeira bicicleta. Lembrei do que senti. E sorri. Andando pela rua, sorri. Como um bobo, sorri. Gostei de imaginar que, em algum canto da Alameda, um menino estava prestes a experimentar aquele mesmíssimo sentimento que um dia experimentei. Felicidade. Sabe?

Felicidade.

Só que quando cheguei na Farrapos, tive profunda vergonha de conseguir pensar em felicidade. Odiei a mim mesmo, com todas as forças, por conhecer essa palavra que, de repente, parecia tão horrível, tão suja. Felicidade. Me senti mal. Mal de verdade. Me senti inútil e pequeno. Desejei, do fundo do coração, que me acometesse a pior das desgraças, para que nunca mais eu fosse capaz de esboçar o menor sorriso. Impossível deixar de se alegrar para todo o sempre, eu sei. Ninguém aguenta o peso da realidade por tanto tempo, eu sei. Talvez já no dia seguinte, lá estivesse eu, iludido com alguma bobagem, os dentes todos de fora, a razão novamente engolida. Mas naquele momento, quando cheguei na Farrapos, não pude suportar a ideia de felicidade nem mesmo a ideia de um minúsculo instante feliz.

Atiradas na calçada, uma mãe e duas crianças pequenas pediam esmolas.

No fim das contas, a felicidade — essa capacidade que às vezes temos de nos sentirmos bem e em paz e alegres e vibrantes, ignorando todo o sofrimento existente neste mundo —, a felicidade talvez seja a maior desumanidade possível.

Dei dez reais à mulher. Era tudo o que eu podia dar. Ela, então, olhou para mim e, para terminar de me devastar, disse o seguinte:

— Boas festas!

E de todos os “boas-festas” que recebi nesse dia 23 de dezembro, é justamente esse, o dessa mulher, que faço questão de pegar emprestado para oferecer ao leitor. O “boas-festas” da gente sem eira nem beira. O “boas-festas” que nos acusa a todos. Para que não nos esqueçamos de que, afinal, cá estamos, todos nós, integrando esta sociedade doente, onde nenhuma alegria, nem mesmo a menorzinha das alegrias, deixa de ter aspecto indecente. Para que não nos esqueçamos de que, afinal, cá estamos, todos nós, mergulhados num contexto social que vai de mal a pior, onde há muito tempo a comemoração tornou-se absolutamente obscena. Para que percamos por completo a fome em plena ceia de Ano-Novo, incapazes de esquecer aqueles que não têm o que comer. Para que percamos por completo o sono, incapazes de esquecer aqueles que não têm onde dormir. Para que percamos por completo a vontade de sorrir, incapazes de esquecer aqueles que só têm motivos para chorar.

Boas festas.


autores relacionados

doo.is