Amor e fúria
Em AFETOS FEROZES, assim como na obra de Elena Ferrante, a violência é um elemento onipresente — a violência cometida pelas mulheres e a violência cometida contra elas
“Mal me lembro dos homens. Eles estavam por toda parte, lógico — maridos, pais, irmãos —, mas só me lembro das mulheres”. É a partir de sua própria experiência de vida que a jornalista e ensaísta Vivian Gornick escreve sobre amor, amizade, envelhecimento, solidão e a complexidade da relação entre mãe e filha.
Nascida em Nova York, em 1935, Gornick é autora de mais de uma dezena de livros, mas é a primeira vez que uma de suas obras é publicada no Brasil: Afetos ferozes, de 1987, foi eleito pelo New York Times como o melhor livro de memórias dos últimos 50 anos. A tradução para o português é de Heloisa Jahn e a apresentação, do escritor Jonathan Lethem.
Mestre em artes pela Universidade de Nova York (NYU), Gornick foi repórter do The Village Voice, considerado o primeiro jornal alternativo dos Estados Unidos, por quase dez anos. Também escreveu para o New York Times, entre outros veículos. Um de seus ensaios publicado no Village, em 1969, foi fundamental para a formação do grupo New York Radical Feminists. O texto está digitalizado na íntegra e pode ser lido aqui.
Para Jonathan Lethem, Afetos ferozes tem “aquela qualidade louca, brilhante, absoluta, que tende a retirar uma obra de seu contexto para elevá-la, tornando-a admirada, com toda a razão, como uma obra ‘fora do tempo’, ‘um clássico’”. No prefácio, o escritor enaltece o que chama de “sinceridade dilacerante e ao mesmo tempo quase displicente do livro”.
O fio narrativo, trabalhado literariamente, parte das lembranças de infância da autora-narradora: “Estou com oito anos. Minha mãe e eu saímos do nosso apartamento para o patamar do segundo andar”. Logo no início, a dupla “minha mãe e eu” anuncia o elo que vai guiar a leitura, o vínculo entre Gornick e sua mãe.
A autora vai fazendo uma espécie de inventário dessa relação ao longo do tempo, partindo do Bronx, bairro em que nasceu e viveu até o começo da vida adulta. Em sua memória, todas as mulheres do prédio em que morou eram “rudes como a sra. Drucker [uma vizinha] ou ferozes como minha mãe”.
“Elas nunca falavam como se soubessem quem eram ou entendessem o acordo que haviam feito com a vida, mas era comum que agissem como se soubessem. Espertas, voláteis, iletradas, funcionavam como personagens de Dreiser [autor de Um lugar ao sol e de Uma tragédia americana]. Às vezes, passavam-se anos de calma aparente para, de repente, haver uma irrupção de pânico e selvageria: duas ou três vidas marcadas (ou destruídas), depois a tempestade diminuía. E então, de novo: calma taciturna, torpor erótico, a normalidade sem surpresas da denegação cotidiana. E eu — a garota que crescia no meio delas, moldada à sua imagem — as absorvia como se fossem clorofórmio impregnando um pedaço de pano pressionado contra meu rosto.”
O tema faz pensar em outra escritora contemporânea que, poucos anos depois da publicação de Afetos ferozes, lançaria um romance que também viria a explorar, de maneira perturbadora, a relação entre mãe e filha: o italiano Um amor incômodo (1992), de Elena Ferrante. Se os títulos originais parecem ressaltar a ambivalência desse laço (Fierce attachments e L’amore molesto), também há outros paralelos que poderíamos traçar entre as obras, assim como com os demais romances de Ferrante.
“Meu relacionamento com minha mãe não é bom, e à medida que nossas vidas se acumulam, muitas vezes dá a impressão de piorar. Estamos presas num estreito canal de familiaridade [...]. Às vezes, passam-se anos seguidos de exaustão, em que ocorre uma espécie de abrandamento entre nós. Depois a raiva vem de novo à tona, quente e nítida, erótica em seu poder de exigir atenção.”
O trecho acima quase poderia ter sido narrado por Délia, de Um amor incômodo, ou mesmo por Elena Greco, da tetralogia napolitana. Podemos encontrar nas duas autoras uma tensão semelhante: amor e fúria, ou atração e repulsão, são forças que movimentam suas narrativas. Em Afetos ferozes, como em Ferrante, a violência é um elemento onipresente — a violência cometida pelas mulheres e a violência cometida contra elas.
No Bronx, que considera “uma colcha de retalhos de territórios étnicos invadidos”, a família de Gornick passa um ano vivendo em meio a uma vizinhança italiana: “Meu irmão e eu fôramos as únicas crianças judias na escola, e nosso sofrimento havia sido indizível. Miseráveis: esse é o termo que descreve como nos sentíamos”.
A busca por uma identidade é outro tema que se destaca na obra de Gornick: “A verdade mais ampla é que a ‘outridade’ dos italianos ou dos irlandeses ou dos judeus em nosso meio era um elemento picante, uma fonte de interesse, e dava um sentido de definição”.
Ao entrelaçar o passado ao presente a partir de suas próprias rememorações e das rememorações maternas, a impressão é a de que Gornick vai fazendo o mesmo: dando um “sentido de definição” ao tecer uma identidade narrativa.
A caminhada pela cidade, tão concreta quanto simbólica, é um topos da literatura (como em Ulysses, de James Joyce), que a autora revisita à sua maneira. Ao final, chega a uma espécie de conclusão: na relação com a mãe, está sempre “metade dentro, metade fora”. Mas, se entrar com os dois pés soa algo impossível, romper o elo definitivamente parece fora de questão.
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Fabiane Secches é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.