Trecho do livro
Meu relacionamento com minha mãe não é bom, e à medida que nossas vidas se acumulam, muitas vezes dá a impressão de piorar. Estamos presas num estreito canal de familiaridade, intensa, que nos prende uma à outra. Às vezes se passam anos seguidos de exaustão, em que ocorre uma espécie de abrandamento entre nós. Depois a raiva vem de novo à tona, quente e nítida, erótica em seu poder de exigir atenção. Neste momento as coisas não vão bem entre nós. Minha mãe “lida” com esses períodos em que as coisas não vão bem entre nós me acusando em voz alta e publicamente da verdade. Basta ela me ver para dizer: “Você me detesta. Você sabe que me
[leia mais]
Meu relacionamento com minha mãe não é bom, e à medida que nossas vidas se acumulam, muitas vezes dá a impressão de piorar. Estamos presas num estreito canal de familiaridade, intensa, que nos prende uma à outra. Às vezes se passam anos seguidos de exaustão, em que ocorre uma espécie de abrandamento entre nós. Depois a raiva vem de novo à tona, quente e nítida, erótica em seu poder de exigir atenção. Neste momento as coisas não vão bem entre nós. Minha mãe “lida” com esses períodos em que as coisas não vão bem entre nós me acusando em voz alta e publicamente da verdade. Basta ela me ver para dizer: “Você me detesta. Você sabe que me detesta”. Posso estar lhe fazendo uma visita, por exemplo, e ela diz a quem quer que por acaso esteja no aposento — um vizinho, um amigo, meu irmão ou uma das minhas sobrinhas: “Ela me detesta. Não sei o que tem contra mim, mas ela me detesta”. Se estamos as duas dando uma caminhada, é bem capaz de parar um desconhecido na rua e dizer: “Esta é minha filha. Ela me detesta”. Depois se vira para mim e implora: “O que foi que eu fiz para você me detestar desse jeito?”. Nunca respondo. Sei que ela está em chamas e prefiro deixá-la arder. Por que não? Também estou.
Mas percorremos infinitamente as ruas de Nova York juntas. Nós duas vivemos agora na parte sul de Manhattan, em apartamentos separados por pouco mais de um quilômetro, e gostamos de caminhar juntas, em vez de nos visitar. Minha mãe é uma camponesa urbana e eu sou filha da minha mãe. A cidade é nosso elemento natural. Temos, as duas, aventuras cotidianas com motoristas de ônibus, mulheres sem-teto, porteiros e malucos na rua. Andar nos faz mostrar o melhor de nós. Estou com quarenta e cinco anos e minha mãe com setenta e sete. Tem um corpo forte e saudável. Atravessa facilmente a ilha sem minha companhia. Durante essas caminhadas, não sentimos amor uma pela outra; é comum estarmos discutindo, mas mesmo assim saímos para andar.
Nossos melhores momentos juntas são quando falamos do passado. Digo a ela: “Mãe, você se lembra da sra. Kornfeld? Me conte de novo aquela história”, e ela se delicia contando a história outra vez. (É só o presente que minha mãe detesta; basta o presente virar passado que ela imediatamente começa a amá-lo.) A história é ao mesmo tempo a mesma e outra toda vez que ela a conta, porque estou mais velha a cada vez e me ocorre fazer uma pergunta que não havia pensado em fazer na vez anterior.