Acusmática para Eileen
Uma playlist por Bruna Beber, poeta e tradutora de CHELSEA GIRLS
De 26 de maio de 2016 a 2 de outubro de 2017, passei todos os meus dias e centenas de maços de cigarro tentando balancear meu ouvido na frequência do ouvido de Eileen Myles. Eu queria criar uma engenhoca imaginária, um telefone sem fio de lata e barbante que me levasse à porta imediata de seu ouvido ou, mais que isso, talvez, um estetoscópio que conseguisse conectar o meu ouvido ao coração dela. Sem isso, não me parecia possível traduzir Chelsea Girls – que já tinha lido algumas vezes e há algum tempo cultivava imensa vontade de traduzir – pois minha primeira necessidade era ouvir aquelas histórias e desfazê-las em pedaços, de modo que se soltassem no espaço e passassem a se misturar com todas as histórias que eu já tinha ouvido (e esquecido) um dia. Não à toa, no ouvido tem martelo e bigorna, instrumentos de destruição e ajuste, e também estribo (plataforma e arreio) e, por fim, o tímpano (tambor e sino), todos eles a serviço do que passei a chamar de Acusmática para Eileen: ela, a sábia, eu, a ouvinte, delirando dentro de sua voz em outra língua para tentar achar, isto é, ouvir com alguma precisão a voz que eu queria captar e exportar para compor a voz da minha tradução.
Assim, depois de muito enlameada (cercada é pouco) nesse vozerio apolíneo que precisava pôr de pé em português, comecei a abrir guarda para as vozes dos outros que me pareciam ter sido especiais (e também, sic, nocivas) para o ouvido de Eileen – as músicas –, e compus uma playlist para o livro. É claro que ela me deu pistas e a playlist segue, com alguma risca, a ordem de aparição das músicas ao longo da narrativa, mas nem todas são diretamente citadas. Nesses casos me apeguei à época, aos álbuns então recém-lançados, às bandas e aos contextos históricos que são também personagens e, em alguns momentos, inventei uma trilha (orientada, é claro) para cada um.
Do título, joguei a Nico cantando "Chelsea Girls" (Lou Reed e Velvet), em referência ao filme, ao hotel, à Factory etc. No primeiro capítulo, pesquei o Neil Young cantando "Only love can break your heart" – aliás, um verso com que também finalizei um poema do meu primeiro livro. Depois no capítulo "Madras", um Dylan: "It’s all over now baby blue". Até que cheguei na Patti Smith, com "Kimberly", a melhor música do Horses, e me dei conta de que não fazia sentido seguir uma cronologia (seria uma traição ao livro) e comecei a mixar todas as músicas citadas com as épocas que eu mesma contextualizei. Mas tudo que se canta no livro está aí, e dei preferência para gravações originais e remasterizadas, formando 53 músicas e 3h40 de viagem pelo cancioneiro norte-americano dos anos 30 aos 80. Eram 55 músicas, mas o Spotify tirou uma peça de comédia seguida de música – "Knockers Up" –, da Rusty Warren porque (acho) tinha muito palavrão (!), e a "Oh what a beautiful morning", na voz do Gordon Macrae, porque acho que esse tipo de exclamação, infelizmente, não tem muito cabimento no mundo de hoje. Enfim, muita raridade, de bandas obscuras de Massachusetts a Rolling Stones, Eddy Arnold, The Supremes, John Coltrane, Glenn Miller, Oliver, Otis Redding, Jimi Hendrix, Nelson Eddy, The Doors, Beatles, The Turtles, Johnny Mathis, Elvis Presley, Barry & The Remains, Ornette Coleman, Air Supply, Jay & The Americans, Bowie, Patsy Cline e… ouça:
Bruna Beber é uma poeta, escritora e tradutora brasileira. Publicou a fila sem fim dos demônios descontentes (2006), balés (2009), rapapés & apupos (2012), Rua da Padaria (2013), Ladainha (2017) e traduziu CHELSEA GIRLS, romance de Eileen Myles lançado em fevereiro deste ano pela Todavia.