A visão do inocente*
Leia trechos de uma das primeiras resenhas de O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO [pode conter spoiler]
4 de agosto de 1951
Holden Caulfield, o protagonista de dezesseis anos do primeiro romance de J. D. Salinger, O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO, [...] se diz iletrado, mas ele é um leitor. Um dos testes a que ele submete os livros que lê é ver se fica com vontade de telefonar para o autor. Ele se empolga com um livro de Isak Dinesen e tem vontade de telefonar para ela. Ele gostaria de ligar para Ring Lardner, porém um irmão mais velho lhe diz que Lardner morreu. Ele acha Servidão humana muito bom, mas não sente nenhum impulso de ligar para Maugham. Ele gostaria de telefonar para Thomas Hardy, porque tem uma boa impressão de Eustacia Vye. (Ninguém, evidentemente, deu a ele as más notícias sobre Hardy.) Salinger passa nesse seu teste literário pouco ortodoxo com honras: este leitor certamente gostaria de ligar para ele.
O romance brilhante, engraçado e profundo de Salinger é escrito em primeira pessoa. Holden Caulfield é quem nos conta sua própria história, em seu próprio e estranho idioma. Holden não é um garoto normal. É hipersensível e hiperimaginativo (talvez essas duas palavras sejam sinônimos). É indeciso. É inexoravelmente autocrítico; em vários momentos, ele se diz frouxo, se diz um terrível mentiroso, um louco, um idiota. Ele fica doido com a “fajutice”, uma rubrica em que vagamente inclui não apenas a insinceridade, mas também o esnobismo, a injustiça, a insensibilidade à deterioração das coisas, e muito mais. Ele é pródigo em preocupações. [...] De modo inconsciente, é frequentemente levado à compaixão. Ele não tem muitas defesas. [...]
A literalidade e a inocência do ponto de vista de Holden diante dos fatos tremendamente complicados e muitas vezes corruptos da vida compõem o humor deste romance: pechinchas sérias com taxistas beligerantes; tentativas abortadas de conversa com uma lacônica prostituta apressada; uma discussão “intelectual” com um intelectual afetado e fajuto apenas uns poucos anos mais velho que ele; uma expedição com Sally Hayes, que é, certamente, uma das mais engraçadas expedições na história das obras juvenis. Em geral, os contatos de Holden com o mundo são extremamente engraçados. As suas conversas consigo mesmo é que são trágicas e comoventes — um turbilhão sombrio se agitando ferozmente sob a incansável hilaridade das suas atividades exteriores. As dificuldades de Holden afetam seu sistema nervoso, porém jamais a sua visão. É a visão de um inocente. Ao bote salva-vidas dessa visão ele se agarra com todas as forças, assim como se agarra a um disco que compra para Phoebe (até que o disco quebra), a um boné vermelho de caçador do qual ele gosta muito e que acaba por dá-lo a Phoebe, e à luva de beisebol de Allie. Ele anseia por estabilidade. Ele ama o Museu de História Natural porque as figuras nas redomas de vidro não mudam; não importa quantas vezes você vá, o esquimó estará lá pescando, o veado seguirá bebendo água na poça, a índia continuará tecendo a mesma coberta. Você muda as circunstâncias da sua visita — uma vez você vai de sobretudo, quando na outra vez tinha ido sem, ou você pode ter “passado por uma daquelas poças na rua com arco-íris de gasolina nelas”**, mas a índia, o veado e o esquimó são estáveis. (Era por isso que Keats gostava das poses em suspenso das figuras na urna grega.) Holden sabe que as coisas não vão continuar iguais; elas estão se dissolvendo, e ele não consegue aceitar isso. Ele não tem o conhecimento para rastrear o processo de dissolução nem a clareza mental para defini-lo, só o que sabe é que ele está ofegante em meio à avalanche de desintegração à sua volta. E no entanto, há alegria, um imenso alívio na cena final deste romance, no carrossel do Central Park, com Phoebe. (“Do meio do nada me deu uma puta felicidade de ver a nossa amiga Phoebe dando voltas e mais voltas.”) Holden vai ficar bem. Um dia, ele provavelmente vai sentir vontade de ligar para Jane. Vai inclusive ficar mais tolerante com as pessoas fajutas — isso é parte de como a vida funciona —, assim como ele já teve de passar pela agonia de dizer “Foi um prazer ” para pessoas que ele não sentiu prazer em conhecer. Ele pode até mesmo, algum dia, escrever um romance. Eu gostaria de lê-lo. Este romance eu adorei. Falando sério — eu realmente adorei.
* Texto traduzido por Rogerio Galindo. Leia aqui a resenha na íntegra (em inglês), publicada na edição impressa da revista New Yorker em 11 de Agosto de 1951.
** O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO está sendo traduzido por Caetano W. Galindo. As citações do livro incluídas nesse texto estão sujeitas à alteração no processo de edição.