A VIDA PELA FRENTE como antídoto para o ódio

Por Áurea Vieira

A filósofa e francófona Áurea Vieira conta como foi reler o premiado romance de Romain Gary em tempos de desamor

 

Há alguns livros que, mesmo traduzidos para muitos idiomas, não sabemos exatamente por quê, não são editados no Brasil. Por amar tanto a França e sua literatura, dois autores do Pós-Guerra me são caríssimos: Georges Perec e Romain Gary. Eles foram daquelas descobertas indeléveis no período em que morei no "hexágono", sinédoque que os próprios franceses costumam fazer e que evoca a cartografia geométrica da antiga Gália. 

“A VIDA PELA FRENTE", romance breve de Émile Ajar —Romain Gary disfarçado sob pseudônimo, esse fetiche literário tão saboroso— foi lançado pela todavia em setembro. Ao saber da notícia, levantei-me depressa da cadeira, vociferei um "finalmente" ao estilo da tão típica impaciência francesa, deixei que a gravidade fizesse seu trabalho fatal de pendurar meus braços e dali em diante eu estava pronta, enfim, para ir à livraria mais próxima que regalasse minha impertinência e comprar pelo menos uns 30 exemplares para presentear meus melhores amigos: "Tome aqui um pouco desta lição de vida”, seria uma dedicatória urgente e prescrita como receituário médico. E não tenho dúvidas de que estaria curando-os de algum resquício de ódio que nos impregna no dia a dia, principalmente nos últimos anos.

Li "La vie devant soi" em 2000. A aurora do milênio me trazia uma história de meados do século XX, lançada no ano em que nasci com a curiosa anedota verídica de que Gary se escondeu no heterônimo e era o único francês com o histórico de dois Prêmios Goncourt. Vale aqui dizer que o Goncourt é um verdadeiro acontecimento na França; o prêmio envia um cheque de 10 euros ao autor da obra escolhida, o que não paga nem sequer um exemplar mas lhe garante um prestígio eterno, a inserção num rol das letras desejadíssimo e a recompensa de virar um best-seller imediato. "Pas mal."

 

MALANDRAGENS DE MOMO 

No livro, Momo é um garoto de dez anos com a vida pela frente, mas que certamente já conhece muito do exercício de habitar o mundo com suas injustiças e idiossincrasias. Mora na Paris periférica, cuja população guarda reminiscências da Segunda Guerra e de conflitos coloniais franco-africanos quase nada mencionados ao longo do texto, mas o suficiente para saber que os arredores do prédio onde se passa a história são repletos de judeus, árabes e africanos.

Sua mãe postiça, Madame Rosa, nunca se considerou como tal; sua referência intelectual, Sr.Hamil, talvez fosse quem mais lhe dera insumos para gostar de literatura, o que lhe rendeu um respeito enorme por Victor Hugo, a quem chama de Senhor. A cada vez que enuncia o autor de "Os Miseráveis", suscita no leitor um sorriso delicado de quem lê a admiração do próprio escritor pelo seu antepassado literário.

As malandragens de Momo, pequenos furtos e algumas mentiras pueris, são basilares na sua formação como ser humano ingênuo, mas não muito, precoce nos bons sentimentos, generoso no olhar para o próximo e preciso em aforismos simples que fundamentam a beleza de sua personalidade e, evidentemente, a harmoniosa pluma de Gary. 

As qualidades de narrador sensível de Momo conquistam rapidamente o leitor e lhe conferem uma experiência realista da vida com tenra idade. Os diálogos que perpassam personagens como Madame Rosa, Dr.Katz, Sr. Hamil, Madame Lola e Momo demonstram que sempre há uma outra forma ética e de inclusão social para os excluídos. Naquele bairro, campo da invisibilidade,  espera-se fiscalizações policiais ora corriqueiras, ora inconvenientes; documentos falsos são artífices recorrentes para a sobrevivência pacífica e justificativas reincidentes; a prostituição é um emprego líquido e certo até certa idade e viver de biscate o resto da vida é o remédio paliativo de grande parte dessa comunidade.

Do livro, há inúmeras lições verdadeiras de companheirismo e dedicação, mas encantador é, sobretudo, a relação de Madame Rosa e Momo. Ela, ex-prostituta, idosa, sobrevivente de um campo de concentração nazista, segue seus ritos judaicos escondida de todos, no seu "buraco judeu". No entanto, criou Momo como muçulmano a pedido de quem o entregou em seu orfanato informal de filhos de prostitutas. 

Madame Rosa me parece das personagens mais resilientes da literatura: fortíssima e maternal. Ela não se preocupa em esconder a preferência por Momo, que, por sua vez, não a decepciona na reciprocidade de seu afeto incomensurável.

No microcosmos do prédio em que vivem, há também Madame Lola, travesti senegalês, ex-pugilista, que ganha a vida fazendo programa no Bois de Boulogne (bosque urbano, hoje, das vizinhanças mais caras de Paris, ao lado da recente e já célebre Fondation Louis Vuitton, mas que ainda conta com alguns esporádicos prestadores de serviços sexuais).

Não é justo destilar spoilers aqui, mas ressalto que o livro editado agora vem com uma tradução preciosa e uma capa colorida inclinada ao otimismo tão em falta no mundo de hoje, convenhamos. Seu advento inédito no Brasil e a releitura teceram em mim novos sentimentos, mas em essência me fez repactuar que, 19 anos depois, precisamos dos mesmos ensinamentos de Momo. 

Este romance, que tem quase 45 anos, perdura com ideias universais e atemporais. Romain Gary me emocionou. É necessário se indignar e insurgir contra o desamor que vemos no mundo. Deixe Momo te dizer isto.

 

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Áurea Vieira é filósofa, pós-graduada em gestão cultural e responsável pela área de relações internacionais do Sesc-SP.

 


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