A PONTE

Por Veronica Stigger

Leia uma das ficções inéditas apresentadas por Veronica Stigger em SOMBRIO ERMO TURVO

Todo empezó como una broma. Quando Pedro percebeu que já morava havia uma década na cidade que elegeu como sua naquele país estrangeiro e que nunca, em todo esse tempo, havia cruzado a antiga e robusta ponte romana, decidiu que jamais o faria. E foi além: decidiu também que sob nenhuma condição atravessaria para o outro lado do rio, mesmo que isso o obrigasse a dar imensas e custosas voltas por ruas quase intransitáveis a fim de sair da cidade apenas pelas vias do norte. Os anos se sucederam e o que antes não passava de uma birra quase infantil acabou por se transformar numa estranha fobia. Não há como determinar com exatidão o momento em que Pedro começou a acreditar nas desculpas que inventava para evitar a ponte e o lado de lá da cidade: era perigoso, tinha lobos e alunos e, se a cruzasse, algo inesperado — um raio, um meteorito, um destroço de nave espacial — certamente o atingiria. Outros dez anos se foram e Pedro não apenas se manteve firme em sua resolução como se tornou ainda mais rigoroso com relação aos preceitos estabelecidos: nem mesmo perto da ponte chegava. Os parentes que vinham de longe para visitá-lo se ressentiam de não poder contar com sua companhia para atravessar a dita-cuja. Até mesmo o nome da ponte recusava-se pronunciar; se era inevitável, sussurrava-o de modo quase inaudível, como se estivesse dizendo “câncer”, ou como se estivesse dizendo “morte”. Sua teimosia — talvez fosse mais correto falar agora em temor — o impedia de saber que a ponte tinha piso de paralelepípedos e muros de granito, que numa de suas margens uma imponente escultura pré-histórica de touro zelava por todos que a transpunham, que bem no meio de sua travessia havia bancos de pedras, nos quais, durante o dia, os passeantes se quedavam por alguns instantes para admirar a paisagem, tirar umas fotos ou apenas descansar e, à noite, os universitários se reuniam para contar as estrelas cadentes, que, na outra margem, havia inúmeras árvores, muito mais frondosas do que as do lado de cá, as quais, quando agitadas pelo vento, produziam um estranho som como o de uma chuva forte e constante, e que não eram lobos, mas cães que uivavam longamente quando ouviam a música das folhas em movimento tresloucado. No fim de uma das manhãs mais quentes de agosto, quando ninguém se aventurava a enfrentar o sol impiedoso, Pedro saiu para jogar o lixo fora e, cumprida a tarefa, algo, que ele jamais seria capaz de dizer o quê, o impulsionou a dar uma volta. Desceu distraidamente em direção ao centro, passou pela universidade, pelo bar do Antonio, que estava fechado em função das férias, pela catedral, pelas ruelas que levavam ao museu de arte nova, pela praça descampada, pela livraria, pela igreja, pela escola. Talvez o excesso de sol a tornar ainda mais incandescente sua cabeleira de fogo, talvez um princípio de delírio em decorrência de uma iminente desidratação tenha conduzido Pedro às margens do rio. Sem se dar conta de onde estava, seguiu caminhando, de cabeça baixa, suando e com uma sede nunca antes sentida. Andou por mais alguns metros até que algo brilhando no chão de pedra lhe chamou a atenção. Aproximou-se e constatou que era uma moeda. Sua superfície prateada refletia o sol com tal intensidade que quase cegava quem a olhasse. Pedro abaixou-se para apanhá-la e viu que era uma moeda de outro tempo, de baixíssimo valor, sem qualquer função econômica no presente e que, ainda por cima, trazia numa de suas faces a efígie do antigo ditador. Sorriu, soprou a moeda (mais por hábito do que por realmente achá-la empoeirada) e guardou-a no bolso da bermuda que reservou por décadas para usar somente num dia de calor fora do comum, como era o caso. Quando se ergueu, notou que estava diante da ponte fatídica, a ponte que por tantos anos evitara e que, como um deus abscôndito (percebia isso somente agora), determinara até aquele instante seus deslocamentos pelo mundo. Embora se negasse a vê-la até mesmo em reproduções fotográficas, desenhadas ou pintadas, não tinha dúvidas de que estava diante dela. Nunca se aproximara tanto da ponte romana e agora estava paralisado: não conseguia nem avançar, nem retroceder. Queria gritar, pedir socorro, mas, quando abriu a boca, não foi capaz de emitir mais do que um balbucio. Desejava escrever a alguém para que o resgatasse daquele lugar, mas esquecera o celular em cima da mesa da sala — afinal, ele só saíra para jogar o lixo fora. O calor havia aumentado, o sol estava a pino. Não passava e nem passaria vivalma por ali. Sem alternativa, Pedro permaneceu parado ao lado da imponente escultura pré-histórica de touro a olhar fixamente para a ponte. Não imaginava que fosse tão longa, nem que ali, à margem do rio, fosse tão quente. Mesmo depois de o sol se pôr, o ar continuava infernal. Pedro achava que, se ficasse onde estava por mais tempo, o calor concentrado nos paralelepípedos derreteria o solado de borracha dos seus chinelos de dedo. Mas ele não arredou pé. A noite caiu completamente e Pedro continuava parado, encarando a ponte. Não suava mais, nem tinha sede. Já era alta madrugada quando ele viu o barco se aproximando. Era um barco simples de pescaria, sem motor, sem vela, sem remo, sem bandeira. Navegava ao sabor do vento, instável, balouçante, por vezes quase adernando. Jogava tanto e com tal leveza que parecia ser feito de papel. A pintura azul e branca sobre a madeira carcomida pelo tempo e pela água descascava em vários pontos, mas ainda preservava intacto o nome grafado com sangue de touro numa caligrafia de volteios: Gaia. Ou seria Gaio? Os olhos míopes de Pedro não podiam precisar. O barco vinha enfeitado com antigas lampadazinhas coloridas, daquelas que não se fabricam mais, penduradas numa espécie de varal erguido com o que, de longe, pareciam ser dois cabos de vassoura fincados toscamente na proa e na popa. O conjunto assemelhava-se a um arraial flutuante. Uma mesa retangular de madeira, coberta por uma toalha xadrez em vermelho e branco, ocupava quase toda a extensão do barco. Em torno dela, sabe-se lá como, dado o espaço exíguo, dispunham-se cinco cadeiras também de madeira, com assento de palha. Em quatro delas, achavam-se sentados dois rapazes e duas moças. Eles eram barbudos e ruivos como Pedro. Vestiam apenas bermudas, sem camisa ou camiseta, e calçavam chinelos de dedo coloridos. Um terceiro rapaz — o único que usava chapéu, um modelo panamá de abas largas e cor clara — ia em pé na proa, de peito erguido, com os braços apoiados na cintura, como um sentinela. As moças, por sua vez, tinham a pele tão branca que davam a impressão de serem transparentes. Seus cabelos, em contraste, eram escuros como a noite. Cobriam seus corpos com vestidos leves, de algodão floreado, sem mangas, e usavam, tais quais os rapazes, chinelos de dedo coloridos. Sobre a mesa, havia duas garrafas de vinho branco, uma perna de cabrito assado, uma porção de batatas coradas, uma salada de folhas verdes e tomates, um queijo cortado pela metade, um grande pão d’água redondo, cinco pratos, cinco copos, cinco garfos e cinco facas, todos de plástico, e maçãs, peras, laranjas e uvas, muitos cachos de uvas. Com exceção do sentinela, todos sorriam e conversavam animadamente. Quando avistaram Pedro, pararam de falar e acenaram. Pedro olhou em volta e constatou que não havia mais ninguém naquela madrugada na Província Negra. O aceno, portanto, só poderia se dirigir a ele. Pedro! Pedro! Pedro!, gritavam. E Pedro não estranhou que aqueles desconhecidos soubessem seu nome. Salve, Pedro!, saudavam agora em pé, enquanto acenavam. O barco, em função de tamanha agitação, balançava ainda mais, todo desengonçado e periclitante. Antes que Pedro decidisse se levantaria ou não o braço para acenar de volta, o barco, como que movido pela simples vontade daqueles que nele navegavam, acostou à margem. O sentinela então estendeu a mão direita a Pedro com a palma virada para cima. Pedro estranhou que a palma não possuísse qualquer linha ou ruga ou calo: era inteiramente lisa, como deveriam ser a das mãos dos recém-nascidos. O sentinela, impaciente, sacudiu levemente a mão, fechou-a e abriu-a novamente, indicando com esse gesto que queria algo. Pedro apalpou os bolsos e encontrou a moeda que havia recolhido diante da ponte. Sorriu pela segunda vez naquele dia e depositou-a na palma estendida do sentinela, que em seguida fechou a mão e deu um passo para trás, abrindo passagem. Pedro entrou no barco, sentou-se na única cadeira vazia, que agora entendia estar reservada para ele, e sorriu pela última vez antes de partir.

 

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