A odisseia do Purus: Euclides da Cunha na Amazônia
Neste post, confira um trecho do décimo capítulo de EUCLIDES DA CUNHA: UMA BIOGRAFIA, em que Luís Cláudio Villafañe G. Santos narra a longa viagem de Euclides à Amazônia, que teve início em dezembro de 1904. Enquanto trabalhava para o Itamaraty, Euclides chefiou a comissão mista brasileira-peruana, criada para resolver a questão fronteiriça entre os dois países na remota região do Alto Purus, atual Acre.
A curiosidade sobre a Amazônia e, principalmente, a possibilidade de repetir o sucesso de Os sertões no relato que contava fazer posteriormente à aventura eram, decerto, sua principal motivação, mas a questão material também contava. Comentou com o pai que esperava receber pelo menos três contos de réis como salário, mais do que o dobro do que chegara a receber como engenheiro do estado de São Paulo. Mas, se pagava bem, a comissão era temporária; apenas um alívio momentâneo para o problema da falta de emprego seguro. O pai cobrava dele uma atitude mais pragmática, e Euclides concordou: “O senhor tem razão: tenho sido idealista demais”. Imaginou que a Comissão do Purus abriria as portas para outros encargos semelhantes; “pretendo desempenhá-la com a máxima dedicação”, assegurou.
Na busca por estabilidade financeira, atirava para todos os lados. No dia 28 de setembro de 1904, o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil noticiaram que Euclides e alguns sócios haviam apresentado um requerimento à Câmara dos Deputados solicitando concessão para a construção e exploração de uma estrada de ferro unindo o porto de Santos à capital do Paraguai. O projeto não prosperou.
Naquele mês, ele recebera a vista de Oliveira Lima no Guarujá. Rio Branco já desistira de tê-lo como representante junto ao governo do Peru e o mandara para a Venezuela, muito longe do confortável posto na Europa que o pernambucano ambicionava. De modo canhestro, Euclides ainda tentou motivar o amigo com o argumento de que a Venezuela era “talvez a parte mais intelectual de toda a América Latina”. Para dar força ao argumento, insistiu que ali existiam poetas extraordinários e citou — errando totalmente — Estrada Palma, que não era poeta e tampouco venezuelano, mas então presidente de Cuba, como um autor que lhe deixara “a impressão dos versos maravilhosos”.
Euclides passou a se corresponder com Domício da Gama para acertar os detalhes da ida para o Rio de Janeiro e posterior partida para a Amazônia. Por conta do “mau estado sanitário” da capital, ainda assolada pela febre amarela, pela varíola e pela peste bubônica, tencionava chegar com a família apenas nas vésperas do embarque para Manaus. Começava uma pequena novela.
Em compensação, finalmente a novela que se arrastava desde 1892, sobre sua ambição de lecionar na Escola Politécnica de São Paulo, chegou a um fim: fracassou. As gestões políticas junto ao governo do estado não prosperaram, e em setembro de 1904 ele acabou se convencendo de que não seria contratado. Como com as uvas da fábula, contentou-se com o fato de que — segundo ele — a vaga pretendida era inadequada, pois seria obrigado a lecionar até mesmo veterinária, e tratou de encerrar a questão de forma a preservar o amor-próprio: “Singularíssimo e epigramático. Recusei: e foi uma solução belíssima”.
Mesmo antes de empossado na Academia de Letras, Euclides começou a se envolver nas eleições da instituição, passando a orientar e promover a candidatura do amigo Vicente de Carvalho, na companhia do qual quase naufragara no litoral paulista em 1902. Não haveria tempo hábil para realizar a cerimônia de posse antes da partida para a Amazônia; pouco antes de viajar, Euclides escreveu a Machado de Assis para confirmar a investidura na Cadeira nº 7. Já podia votar no amigo, a sessão solene ficava adiada para quando voltasse à capital.
Em fins de setembro, Euclides e família retornaram ao Rio de Janeiro depois de muitos anos morando fora da capital do país. Ele devia tratar dos detalhes burocráticos da expedição com o diretor-geral do Itamaraty, visconde de Cabo Frio, e instalar a família na cidade. As duas tarefas foram muito mais difíceis do que imaginara.
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Começava uma odisseia pela selva amazônica que só se encerraria em 23 de outubro, com a volta ao ponto inicial. A aventura estava, de fato, repleta de perigos. Além dos desconfortos, das doenças e das outras ameaças da natureza, a região do Alto Purus mal acabava de sair de um conflito armado, depois da negociação de um armistício por Rio Branco.
Para alcançar as regiões onde a exploração da borracha por brasileiros era mais intensa, ao longo do rio Acre, onde o conflito havia sido com os bolivianos, também era necessário passar pelo Purus. Basta lembrar que o rio Acre, que deu o nome ao território incorporado ao Brasil, é um afluente do Purus. Os brasileiros subiam o Purus fosse para entrar no rio Acre, fosse para continuar até o Alto Purus. No sentido contrário, os caucheiros peruanos começaram a se expandir pelo Alto Purus, vindo pelos varadouros desde a bacia do Ucayale e descendo pelo rio. A disputa pela riqueza da borracha se transformou em verdadeira guerra entre seringueiros e caucheiros no Alto Purus, com muitos homicídios e atrocidades perpetrados pelos dois lados. O governo peruano interveio em defesa de seus nacionais e em 1903 e no início de 1904, tropas peruanas passaram a atuar ao lado dos caucheiros. Com a ameaça de intervenção militar brasileira, em julho de 1904 Rio Branco obteve uma trégua. Enquanto não se chegasse a um acordo, o Brasil controlaria o rio Purus até o barracão do Catai, já bem depois da boca do rio Acre. Daí em diante, até a nascente do rio, no Alto Purus propriamente dito, as autoridades dos dois países administrariam o território conjuntamente, por meio de uma comissão mista.
Era uma trégua ainda frágil. Os ressentimentos de um lado e do outro persistiam e tornavam a situação potencialmente explosiva. A expedição de Cunha-Buenaño teria que atuar com muita diplomacia. Para aumentar o perigo, era frequente que tanto os seringueiros como os caucheiros matassem ou escravizassem os índios da região. Assim, tampouco havia como afastar a possibilidade de ataques dos nativos, para os quais era irrelevante saber se estavam matando invasores de uma ou da outra nacionalidade. Para enfrentar toda hostilidade, tanto a comissão brasileira quanto a peruana eram compostas de um número expressivo de militares. No caso brasileiro, contudo, a indisciplina dos militares somada à discutível capacidade de liderança de Euclides geraram uma constrangedora sucessão de problemas.
No dia 9 de abril, as embarcações chegaram ao ponto em que o rio Purus deságua no Amazonas. Começava a jornada de 3210 quilômetros, da foz do Purus até suas nascentes. No dia 15, uma primeira discussão surgiu na Lancha nº 4 entre os dois maquinistas; o menos graduado foi desembarcado na primeira parada. Nos dias 17 e 18, um marinheiro e um soldado, respectivamente, foram punidos com o aprisionamento no porão por insubordinação. No dia 22, a lancha foi palco de um pugilato entre o primeiro maquinista e o prático. Euclides decidiu desembarcar também o primeiro maquinista. No dia 26, foi preso outro marinheiro.
Em 5 de maio chegaram à boca do rio Acre. A maior parte do fluxo de navios ali se desviava e subia por aquele afluente, onde a exploração da borracha era feita unicamente por seringueiros brasileiros; mas a flotilha brasileiro-peruana continuaria pelo Purus, para a área em disputa entre seringueiros e caucheiros. Enquanto isso, os desentendimentos na equipe comandada por Euclides continuavam:
Aí pediu a sua demissão o Arnaldo [o primo de Euclides] — auxiliar técnico — não foi aceita; o comandante Caldas Brito, este voltou [a se demitir], por divergências com o chefe [Euclides], sendo o seu pedido aceito. Otávio, 2º maquinista, esteve com as malas fora da lancha e prestes a voltar; um foguista, o caiaiguac, este desertou. O Argolo brigou com o cel. Nunes, pediu a sua demissão, porém depois reconsiderou o seu ato.
Além das brigas, também ocorriam incidentes prosaicos, mas de consequências daninhas. No dia 9 de maio, por exemplo, “o soldado Sérgio foi lavar o filtro e deixou cair pelo rio abaixo as 12 únicas velas que possuíamos do nosso filtro Pasteur. Ficamos sem água filtrada”. Felizmente, no dia seguinte os peruanos obsequiaram um filtro de carvão para a comissão brasileira.
[...]
A expedição seguiu caminho nas primeiras horas do dia 6 de julho; a partir desse ponto, Euclides percebeu que as povoações peruanas às margens do rio os recebiam cada vez mais friamente, inclusive com certa hostilidade. Decidiu não mais parar nos povoados. Em compensação, com a maior altitude acabaram-se os mosquitos que os atormentavam desde a saída de Manaus: a praga de “carapanãs, piuns e manta-blancas, que a jusante torturavam tanto o viajante, ali desaparecera”. A conduta de distanciamento de Euclides gerou forte discussão com Pedro Buenaño no dia 15 de julho, em uma localidade habitada apenas por índios da etnia campa. O Diário de marcha registrou “forte troca de palavras, que perdurou por algum tempo”. Mais assustadora do que a discussão entre os dois comissários foi, contudo, a visão, três dias depois, do cadáver mutilado de uma indígena jogado nas margens do rio. Pelo que puderam apurar sobre o caso, ela fora morta por vingança. Aplicava-se a justiça local, que Euclides resumiu muito bem em um dos capítulos de À margem da história: “Não há leis. Cada um traz o código penal no rifle que sobraça, e exercita a justiça a seu alvedrio, sem que o chamem a contas”.
Finalmente, no dia 18 de julho, todos chegaram no encontro dos rios Cujar e Curiúja, que a partir daquele ponto se juntam para formar o Purus propriamente dito. Bem instalados em um sítio do comerciante peruano Carlos Scharf, brasileiros e peruanos lá permaneceram por seis dias. As instruções mandavam investigar os dois rios até chegar aos varadouros que davam passagem por terra à bacia do Ucayali. Como Buenaño advertira já em Manaus, tentando convencer Euclides a lavrar uma ata acautelatória, parecia que a partir dali não haveria como avançar.
No Cujar, que leva ao varadouro por assim dizer oficial, incessantemente preferido pelos que comunicam com Iquitos, aguardavam-nos, à parte os bancos de areia e paus, 75 cachoeiras, uma das quais de 2 metros de alto. Se as vencêssemos chegaríamos ao Cavaljani onde as dificuldades aumentariam ao lado dos mesmos empecilhos das quedas-d’água; depois, a passagem penosa do Pucani, para afinal chegar-se ao varadouro. No Curiúja idênticos empecilhos… Depois — os “infieles” [índios].
Euclides desanimava. Buenaño, em compensação, reformulou sua posição inicial e passou a afirmar que ele e seus homens sim, chegariam aos varadouros e por aqueles caminhos de terra atingiriam a bacia do Ucayali, enquanto Euclides e seus gatos-pingados não conseguiriam. Vingava-se do comissário brasileiro. Ficaria firmado em ata que o incumprimento das instruções fora unicamente por deficiência da parte brasileira da comissão. O reconhecimento tinha de ser feito pelas duas equipes em conjunto. Euclides não admitiria tal humilhação. Aceitou o desafio. O grupo partiu em 24 de julho pelo Cujar:
Não exagero dizendo que seguimos à meia-ração. Demandávamos extensa região inteiramente desabitada e os víveres que levávamos — no máximo para 25 dias — se redividiram em carne-seca, farinha, que se acabou ao fim de 12 dias, um pouco de açúcar, que só durou três dias, ½ garrafão de arroz e uns restos de bolacha comprados em Curanja. Propositadamente faço esta lista. É expressiva. Por ela se avalia senão a boa vontade no cumprirmos o dever, ao menos a temeridade de um avançamento que foi sobretudo uma repulsa energética a uma afirmativa desafiadora e impertinente.
Transpuseram 73 cachoeiras — 27 pequenas e 46 grandes, a maior de dois metros de altura, sempre arrastando as canoas nos trechos sem profundidade e erguendo-as com cordas e roldanas para superá-las. Em um desses obstáculos, em um surto de raiva, de revólver em punho, Euclides ameaçou de morte um dos remadores que se recusava a prosseguir.
Em 30 de julho a expedição alcançou o rio Cavaljani. Buenaño repetiu o desafio: “Yo paso, le garantizo que usted no pasa”. Na manhã do dia seguinte, os brasileiros acordaram antes dos peruanos. Prosseguiram com apenas uma canoa, deixando a maior no local. Em 3 de agosto chegaram finalmente ao Pucani, “pequeno rio que vai ter ao varadouro”. O Diário registrou: “Entramos no Pucani às 12h55min. Às 3 horas chegamos ao começo do varadouro”. Estavam na nascente do rio Purus. Do outro lado do varadouro começava a bacia do Ucayali.
Chegara a hora de tomar o caminho de retorno.